Pensar que chegamos à quarta edição da Gazeta Lavra & Oficina nesta sua 3.ª temporada é reviver o conto em torno de Kandumbu, uma figura do interior rural de Benguela que derivaria da aglutinação do pref ixo “ka” (diminutivo) e “ndumbu” (leão), ou seja Leãozinho, conforme a narração vívida do tio Henrique Avindo Manuel (já falecido) que vinha dos fundos da Ganda.
Corriam tempos de seca, de carência e de pirão sem conduto. Verduras com sabor de bílis, ratos fugindo às armadilhas como coelhos ao caçador. Caças nem por milagre! Nessa conjuntura campestre, surge um certo dia que coloca Kandumbu no caminho de uma família com abastança ou ao menos em ambiente festivo. Ressoavam os batuques em tons preparativos para a noite que seria inesquecível, mulheres cuidavam dos comeres e beberes e da ninhada. Sempre, né?
Naquele preciso momento, coincidira que uma cabeça de gado bovino começasse a ser talhada. Quem dera a Kandumbu poder desenferrujar os maxilares, daria o pulmão por um naquinho! Mas lá se conteve, até ver, não é? Bem desviava o olhar. Era deselegante mendigar e, segundo os costumes da sua etnia, “o que é alheio disse ‘olha-me’; não disse ‘me comenta’”. Provérbio, se não conduz, condena. Mais alto porém falou o estado de necessidade. E era aí que começava o dilema. Pedir o quê se a anatomia do animal encerrava em si uma simbologia quanto ao valor das suas peças e o mérito do seu consumo? Além do mais, não conhecendo os convivas, menos ainda a quantidade daqueles, para daí inferir se havia carne que chegasse para todos, valia a pena?
Depois de muito se debater, Kandumbu saudou, no que foi muito bem correspondido. De seguida, desculpando-se pela invasão requisitou, humilde, um pouquinho para saciar a fome, ao menos os testículos do boi, faz favor. E de pronto foi atendido. Foi então que, arrependido, pôs a mão na cabeça. Oh, eles afinal nem eram avarentos! Que burro fui, que não pedi uma peça mais valiosa, um bife, um coração?! Era só questão de tentar, a audácia faria toda a diferença.
Diferente de Kandumbu fez a União dos Escritores Angolanos que (embora desprovida de orçamento para a impressão ou recrutar uma equipa editorial que se dedicasse a tempo integral) teve a audácia de retomar a Gazeta, duas décadas após a hibernação do seu veículo convencional de literatura, artes e ideias, pelas mesmas razões. O período experimental de quatro edições, iniciado em Setembro de 2020 no formato digital apenas, permitiu-nos diagnosticar as nossas limitações, aplaudir as colaborações e solidificar a certeza de que o projecto era para ontem. Com o fim do período experimental, a Gazeta passa a sair trimestralmente a partir do próximo número.
E na dinâmica de contar apenas com a prata da casa (UEA), face à dialéctica de conciliar a missão Gazeta com outros deveres profissionais, não estranhe, pois, o caro leitor que determinadas secções a dado momento sejam assinadas por outros rostos. É o que poderá ocorrer com a secção do editor-chefe, que vinha sendo regularmente assumida pelo membro Gociante Patissa. A propósito aproveitamos para exprimir o vivo reconhecimento a todos e todas (membros e não membros) que vêm enriquecendo a Gazeta ao longo das suas quatro décadas de vida!
Na presente edição, dedicada ao tema Letras & Liberdade, honramos a promessa de trazer textos que não couberam na edição passada, dedicada ao Espaço da Mulher na Literatura Angolana.
Até Outubro!
Gociante Patissa
Jornalista/Escritor/Linguista (gociante.patissa2@gmail.com)
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