segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Crónica | E O ENCONTRAREIS


É já um cliché dizer-se que a literatura, como qualquer forma de arte, ganha vida própria. E um dos indicadores é o reconhecimento público do nosso trabalho, sendo a expressão e a expressividade traços centrais da criação e da criatividade.

Ladainhas à parte, recebo quase diariamente elogios de que “o kota é um grande escritor”, elogios acompanhados imediatamente de pedidos para avaliar textos de jovens (e não só) que aspiram publicar. Um pouco pior do que isso, pede-se o número de telefone do autor porque se quer tirar dúvidas mais tarde.

E fico sempre pensar: ora, o autor como tal é um ser abstracto que não tem número de telefone; quem tem é o cidadão (utente de preocupações e necessidade de gerir o tempo entre o emprego, a pesquisa, a família, etc. Já ouvi dizer que o ofício da literatura deveria ser apenas para pessoas já reformadas/aposentadas, pois conciliar com outras tarefas de comum mortal não é nada fácil).

Os generosos elogios ao “grande escritor”, demasiado grandes para a nossa dimensão, expressam admiração geralmente baseada no que viram ou ouviram dizer na comunicação social sobre a “trajectória”. Residindo boa parte em Benguela, (ainda) não leram nada sobre o elogiado e solicitado a avaliar os textos recém-criados, nem fazem questão de assistir às sessões de lançamento de livros (e já contamos cinco actos desde 2008). Um dos meus livros (“Fátussengóla, O Homem do Rádio Que Espalhava Dúvidas”, da bolsa literária estatal “Ler Angola”) foi publicitado durante um ano na TV e custou apenas 500 Kz (equivalente a três cervejas ou até então à metade do cartão de recarga telefónica mais barato) nas principais superfícies comerciais. Anda esgotado.

Há casos em que alguém diz que gostou muito de ler uma obra nossa. E quando perguntamos o título do livro ou de que tratava o texto… dá branco na mente. E isto é preocupante. Assim terra-a-terra, excelência, uma perguntinha: você não está interessado em ler a minha obra, e (só) eu tenho de arranjar tempo e energias para ler e ajudar a corrigir o seu trabalho?!

Não sendo a literatura uma arte performativa, como são a dança, o teatro e a música, então deveria mover o leitor a dúvida e a curiosidade de folhear e captar a alma criativa, nem sempre equiparada ao cidadão que dá corpo ao artista. A qualidade da escrita não devia ser confiada apenas ao selo da comunicação social (não especializada), ao bom rosto do autor ou à retórica nas entrevistas e debates ou ainda no bom gosto em vestir.

O que agrada o escritor, sem margem de errar, é ouvir falar de como um personagem seu vive (a bem ou a mal) na mente do leitor, é colher um retorno de dentro do livro para a capa, ver desvendadas as armadilhas da criação literária. De sorte que, pedindo por empréstimo a premissa bíblica, diríamos que procurai o escritor (na sua obra) e o encontrareis. Ainda era só isso. Obrigado.

Gociante Patissa | Benguela, 21 Janeiro 2019 | www.angodebates.blogspot.com  
Imagem: blogs ibahia
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