terça-feira, 8 de novembro de 2011

Crónica: Há lugares virgens, tão virgens que a lei não os conhece


Acordei tarde no domingo, digo tarde porque me teria de apresentar no serviço às 7h30 da manhã. Na aviação, no que à empresa em que trabalho diz respeito, há somente dois feriados por ano: o Natal e o Ano Novo. Os demais são conforme a escala de serviço. No domingo não me apeteceu trabalhar, uma indisposição que não entendia, em princípio, bem porquê. Faltou-me ânimo, que muito precisa quem anda no atendimento público. Por isso mesmo, decidi faltar. Isso poderá melindrar quem anda no desemprego, mas não tenho razões para fingir.

Há somente dois lugares onde me sinto completo, em casa da minha mãe e em estúdio de rádio. Ora, não estando no radialismo activo, não restavam dúvidas sobre o que fazer. Peguei no volante, em direcção ao Lobito, para a casa da minha mãe.

Lá posto, os semblantes eram de desolação. Tinha chegado notícia do assassinato da tia Verónica Chilombo, esposa do tio Abílio Gociante, irmão mais velho de minha mãe. Faleceu na remota povoação de Ekovongo, na sequência do espancamento ocorrido dois dias antes na vila da Ganda, aproximadamente 200km da cidade de Benguela. As primeiras informações diziam que a tia se teria envolvido em briga de noras rivais, esposas do primo Lucas, professor e pedreiro. Uma pedrada na cabeça terá aberto o caminho para cinco pontos de sutura.

Como de costume, uma recolha de dinheiro foi accionada, para custear alguns víveres e as passagens de minha mãe e irmão mais velho, a quem recai a responsabilidade de representar a família, desde que partiu o pai, em Julho de 2001. Por volta das 16h00 de domingo, partiram as delegações familiares de Benguela e Lobito num veículo familiar. Só hoje se deu o regresso à base, com uma narração ainda mais tenebrosa das circunstâncias da morte da tia Verónica.

Num belo dia, primo Lucas entende visitar a casa de sua amante, convidando um amigo. Até aqui, nada fora do normal. Há, entretanto, um detalhe que muda tudo: os filhos da senhora não aceitam por nada deste mundo a relação do meu primo com a mãe deles. Ao encontrarem um homem no pátio da sua residência, procuraram saber ao que vinha. Ter-se dito amigo do Lucas foi suficiente para merecer espancamento. E não bateram pouco!

Tia Verónica, que se encontrava na Ganda a passar uns dias, socorreu-se do direito costumeiro que a idade lhe conferia e foi para lá manifestar-se indignada pela agressão dos rapazes ao amigo do potencial padrasto. A iniciativa foi vista como outro insulto pelos rapazes, que retribuíram com sova, ao ponto de a pobre anciã perder o controlo: mijou-se e defecou ali mesmo. No dia seguinte, terão surgido os mesmos agressores, desta vez apedrejando a mais-velha. Feitos os primeiros socorros, a tia entendeu recolher-se, caminhando para a remota povoação de Ekovongo, onde viria a falecer.

Pouco ou nada se diz dos agressores. Fugiram! É bem provável que se fique por isso mesmo, já que, para a minha revolta, as delegações se limitaram a evitar a surra que outros familiares sugeriam para o primo Lucas, visto como a porta de entrada da desgraça. Para agravar as coisas, Ekovongo é um lugar tão virgem, tão virgem, que a lei do Direito por lá não passou. Enquanto isso, a lei costumeira, até onde sei, preocupa-se apenas em prevenir a vingança. Não me parece haver mecanismo para a responsabilização, a não ser lá onde se pratique o “dente por dente, olho por olho”.

A última vez que estive com a tia Verónica foi no ano passado. Guardo dela aquele “espanto” que manifestava, por eu já “ser homem!”, como se na cabeça dela vivesse eternamente criança!

Gociante Patissa, Benguela, 8 de Novembro 2011
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6 Deixe o seu comentário:

Maurício de Souza Lino disse...

caríssimo, saudações fraternas!
Vejo com alegria e surpresa sua mensagem para este dia. Fiquei estupefacto e boquiaberto ao ver uma linguagem crônica tão clara como esta! Que línguagem! Que vocabulário! Que riqueza de literatura! Parabéns! Aqui distante desse Brasil, talvez não saberia dizer se esta crônica é real ou não. Sinto muito! No mínimo, as letras enganam. Mais uma vez, parabéns pelo post!

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Caríssimo Maurício, é sempre reconfortante a sua visita e com ela os comentários. Grato. A crónica foi arrancada do mais profundo pranto, é real. Um abraço angolano

Leroi disse...

Sinceramente acho uma pena o fato ocorrido. Realmente é de se indignar a posição das autoridades competentes.

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Grato, caro Leroi, pela solidariedade. Um abraço

Naty disse...

Amigo, diante de tudo o que li, só posso ficar indignado.

Um abraço.

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Pois é, Naty, esse mundo parece que anda a dar passos pra trás. Grato pela solidariedade. Um abraço

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