Acordei tarde no domingo, digo tarde porque me
teria de apresentar no serviço às 7h30 da manhã. Na aviação, no que à empresa
em que trabalho diz respeito, há somente dois feriados por ano: o Natal e o Ano
Novo. Os demais são conforme a escala de serviço. No domingo não me apeteceu
trabalhar, uma indisposição que não entendia, em princípio, bem porquê. Faltou-me
ânimo, que muito precisa quem anda no atendimento público. Por isso mesmo, decidi
faltar. Isso poderá melindrar quem anda no desemprego, mas não tenho razões para
fingir.
Há somente dois lugares onde me sinto completo, em
casa da minha mãe e em estúdio de rádio. Ora, não estando no radialismo activo,
não restavam dúvidas sobre o que fazer. Peguei no volante, em direcção ao
Lobito, para a casa da minha mãe.
Lá posto, os semblantes eram de desolação. Tinha
chegado notícia do assassinato da tia Verónica Chilombo, esposa do tio Abílio
Gociante, irmão mais velho de minha mãe. Faleceu na remota povoação de
Ekovongo, na sequência do espancamento ocorrido dois dias antes na vila da
Ganda, aproximadamente 200km da cidade de Benguela. As primeiras informações
diziam que a tia se teria envolvido em briga de noras rivais, esposas do primo
Lucas, professor e pedreiro. Uma pedrada na cabeça terá aberto o caminho para
cinco pontos de sutura.
Como de costume, uma recolha de dinheiro foi
accionada, para custear alguns víveres e as passagens de minha mãe e irmão mais
velho, a quem recai a responsabilidade de representar a família, desde que
partiu o pai, em Julho de 2001. Por volta das 16h00 de domingo, partiram as
delegações familiares de Benguela e Lobito num veículo familiar. Só hoje se deu
o regresso à base, com uma narração ainda mais tenebrosa das circunstâncias da
morte da tia Verónica.
Num belo dia, primo Lucas entende visitar a casa
de sua amante, convidando um amigo. Até aqui, nada fora do normal. Há, entretanto,
um detalhe que muda tudo: os filhos da senhora não aceitam por nada deste mundo
a relação do meu primo com a mãe deles. Ao encontrarem um homem no pátio da sua
residência, procuraram saber ao que vinha. Ter-se dito amigo do Lucas foi
suficiente para merecer espancamento. E não bateram pouco!
Tia Verónica, que se encontrava na Ganda a passar
uns dias, socorreu-se do direito costumeiro que a idade lhe conferia e foi para
lá manifestar-se indignada pela agressão dos rapazes ao amigo do potencial
padrasto. A iniciativa foi vista como outro insulto pelos rapazes, que retribuíram
com sova, ao ponto de a pobre anciã perder o controlo: mijou-se e defecou ali
mesmo. No dia seguinte, terão surgido os mesmos agressores, desta vez
apedrejando a mais-velha. Feitos os primeiros socorros, a tia entendeu
recolher-se, caminhando para a remota povoação de Ekovongo, onde viria a
falecer.
Pouco ou nada se diz dos agressores. Fugiram! É bem
provável que se fique por isso mesmo, já que, para a minha revolta, as
delegações se limitaram a evitar a surra que outros familiares sugeriam para o
primo Lucas, visto como a porta de entrada da desgraça. Para agravar as coisas,
Ekovongo é um lugar tão virgem, tão virgem, que a lei do Direito por lá não passou.
Enquanto isso, a lei costumeira, até onde sei, preocupa-se apenas em prevenir a
vingança. Não me parece haver mecanismo para a responsabilização, a não ser lá
onde se pratique o “dente por dente, olho por olho”.
A última vez que estive com a tia Verónica foi no
ano passado. Guardo dela aquele “espanto” que manifestava, por eu já “ser homem!”,
como se na cabeça dela vivesse eternamente criança!
Gociante Patissa, Benguela, 8 de Novembro 2011
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caríssimo, saudações fraternas!
Vejo com alegria e surpresa sua mensagem para este dia. Fiquei estupefacto e boquiaberto ao ver uma linguagem crônica tão clara como esta! Que línguagem! Que vocabulário! Que riqueza de literatura! Parabéns! Aqui distante desse Brasil, talvez não saberia dizer se esta crônica é real ou não. Sinto muito! No mínimo, as letras enganam. Mais uma vez, parabéns pelo post!
Caríssimo Maurício, é sempre reconfortante a sua visita e com ela os comentários. Grato. A crónica foi arrancada do mais profundo pranto, é real. Um abraço angolano
Sinceramente acho uma pena o fato ocorrido. Realmente é de se indignar a posição das autoridades competentes.
Grato, caro Leroi, pela solidariedade. Um abraço
Amigo, diante de tudo o que li, só posso ficar indignado.
Um abraço.
Pois é, Naty, esse mundo parece que anda a dar passos pra trás. Grato pela solidariedade. Um abraço
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