Julgo ter-me já referido, nestas reflexões bloguistas, sobre como é sempre relativa essa coisa da relevância dos assuntos. As linhas de hoje não fogem muito disso. É como não almoçar em casa, que pode ser inócuo para a grande maioria, excepto para uns poucos sujeitos irremediavelmente a comerem fora de casa, por causa do serviço.
Um ano depois de conseguir o emprego de aprendiz de fotógrafo, num estabelecimento precário do bairro Santa-Cruz, no Lobito, fui transferido para a dependência do mercado informal da Catumbela. Nessa altura, entendia já de foco, revelação e impressão. E mais, era impecável no ardil de “flashiar” (na falta de material, fotografávamos de máquina vazia, cabendo ao flash completar a impressão de normalidade. No mínimo 24 horas depois, com semblante incólume, mostrávamos ao cliente qualquer rolo escuro. O resto era já previsível: queimou, há que repetir).
Uma simples barraca – barrotes, esteiras de palha, lona e panos – chamada Foto Boa Imagem. O nome foi sugestão minha. Os encravamentos da máquina fotográfica eram por mim remediados, agachado como muçulmano em hora de meditação, bastando a secretária inundar-me com todos os panos e lonas dali, numa improvisada câmara escura. Estamos em 1994, eu ia a caminho do 16º aniversário. Frequentava a 7ª classe. O entusiasmo foi curto, pois não mais almoçaria em casa. Comíamos o arroz de feijão e peixe frito, em barracas vizinhas. Na verdade, continuo almoçando fora, às vezes mais por puro hábito do que por impossibilidade.
Entre 2000 e 2007, por exemplo, durante a consolidação de uma ONG angolana por nós trazida à luz, podia bem disciplinar o horário do almoço. Eram, afinal, só 15 minutos a pé entre o escritório e a casa, mas acabávamos por consumir ração fria. Cenário diferente fora no emprego anterior, na Sonamet, que fica no centro da cidade. Em 2006 ainda, durante os três meses enquanto segunda pessoa do projecto RBC (Reabilitação Baseada na Comunidade) da Handicap International, na cidade de Benguela, tentava “patar” o almoço em casa da kota, mas lá estava aquela “resistência”. No actual emprego, a caminho de cinco anos, não é diferente. Enfim, parece irreversível… o “mal” está em ser solteiro, provavelmente.
Rendido à tal fatalidade nesses 18 anos de caçador de ganha-pão, transformo em oportunidade cada lugar público de refeições; sempre se pode aprender mais sobre gastronomia, interagir mais com colegas ou mesmo enriquecer o repertório de boatos. Soma-se a isso um aguçado sentido de observação. Por falar em observação, tenho a impressão que conheci ontem um muito exigente cliente de lanchonete, talvez o maior que há entre lobitangas.
Estava pronto o almoço, no beco ao lado da Taag, zona comercial do Lobito, lugar concorrido, que combina bem a simplicidade com o preçário. Não é nem a melhor nem a pior cozinha. Lá o tipo entra e pede kalulú. Uma vez servido, implica: não se pode misturar peixe seco com fresco! A servidora engole, perplexa, em seco. E prossegue, em tom que seria professoral, se não soasse rabugento: diz lá à cozinha, pá! Vocês não sabem, mas as coisas não são assim. Ou peixe seco, ou fresco! A rapariga tenta em tom baixo condescender, mas o cliente tem outro protesto: o quiabo não pode ser servido inteiro, isso não é ético, pa! Tem que ser cortejado!
Não sendo para aqui chamado o que consegui saber sobre a vida e “obra” daquele compatriota, deixei o local com uma certeza: sempre se pode aprender como cozinhar mal à hora do almoço.
Gociante Patissa, Aeroporto da Catumbela, 4 Novembro 2011
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Cá em Portugal costuma-se dizer que quem mais reclama na hora de comer fora, pior come em casa.
Um abraço!
Bem dito, caro Afonso Loureiro. Um abraço
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