domingo, 3 de julho de 2011

Crónica: “Mitos da nossa cegueira”

Mitos existem, e ainda bem. Não pretendem anular a realidade, ou não o deveriam. Por seu turno, a objectividade, que se vem impondo com o advento da comprovação científica, nem com isso consegue anular o mito, vestido às vezes de senso comum, sonhos ou dogmas.

Gosto particularmente de questionar o mito, explorando o mosaico cultural de matriz Bantu, o que tem estado na base de contos ficcionados, alguns publicados mesmo em livro. Outros, no entanto, e com provavelmente menor profundidade, nem por isso são ignorados. Ontem, por exemplo, durante o serão, contaram-me um que se enquadra na categoria secundária.

Isso se passou na era colonial, na região do grupo etnolinguístico Nyaneka Humbi, que hoje compreende à província da Huila, antes Sá da Bandeira. Bom, os povos indígenas viviam, obviamente, do cultivo e pastorícia, o que lhes possibilitava frequentar “a loja do branco”. A dado momento, chegava aos ouvidos de um conterrâneo que sua esposa e o branco da loja tinham um à vontade a mais. Indagada a senhora, logo apresentou solução: “se assim é, meu marido, deixo de ir à loja”. Surpreso, o marido disse que não era para tanto – ou seria porque a mulher é a que mais esforço empreende, por causa mesmo da divisão de papéis na sociedade?

O tempo foi passando, até surgir gravidez – nada mais normal, afinal, não era a primeira. E disse a mulher ao marido: “Acho que tenho mesmo que parar de ir à loja, tenho medo do que ouvi. Dizem que as grávidas têm que ter cuidado com o que vêm, porque pode influenciar na aparência do bebé. Era o caso de albinos, paralíticos, enfim. O marido respondeu que não havia necessidade de alarme, o que lhe custou mais tarde bons amargos de boca.

A mulher andava altamente enfurecida, pois o bebé saíra diferente de todos os outros da aldeia. “Estragaste o meu filho, ó marido teimoso! Eu bem que avisei, mas disseste que não havia problemas. Agora o bebé nasceu mulato, de tanto me fazeres ter contacto com bonecas (caucasianas) da loja!!!”. O marido pediu perdão e assumiu a culpa.

Os tempos mudam, e com isso o aprimorar da lucidez. Temos cada vez mais escolaridade, enquanto a globalização e o avanço da ciência seguem multiplicando o acesso à informação. Cá me parece pois que os mitos existem, com a mesma força de cegueira, mudando apenas de contexto e refinando a forma. Algumas correntes em nome de Deus e determinadas ideologias de sentido único que por aí voam não serão mitos míopes?

Gociante Patissa, do quintal Rádio Morena, Benguela, 3 Julho 2011.
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5 Deixe o seu comentário:

Bípede Falante disse...

Li no Livro dos Guerrilheiros algo como termos de cegar os olhos para poder ver melhor. A lucidez precisa lapidação, trabalho, boa vontade porque é muito mais fácil ser alienado e indiferente.
Abraço.
BF

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Grato, Bípede Falante, pela partilha. uma boa semana para si

Carmem disse...

Super texto!!

Bjussss

Val Du disse...

Grande Patissa e seus textos maravilhosos.

Bjos.

Smareis disse...

Seu texto é muito bem elaborado. Esses mitos acredito que seja mais é falta de informação. Um abraço é ótimo começo de semana pra ti amigo

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