O tractor. Pois, noutros países, sejam desenvolvidos ou emergentes, sei lá, é que destas coisas de bric’s não entendo grande coisa, pois, como dizia, noutros países, o tractor é visto essencialmente na lavoura dos campos agrícolas, mas cá, entre nós, este «meio rolante» de «origem camponesa» tem outras serventias mais urbanizadas, sendo visto pela cidade de Luanda a estilar no milionário negócio do lixo, todo ele versátil, que é uma sujeira daquelas, quer dizer, que faz, quando o «quintal» já está abarrotado. Tuco, tuco, tuco.
«E o que é que o coitado do tractor tem a ver com a conversa, ó Saleno?», perguntou o coiso, intrigado, ao que o cidadão respondeu: «Porque ele fez parte da encenação».
«Quê encenação?», insistiu o homem, sem me deixar respirar, ao que, diante da teimosia dele, me senti responsavelmente obrigado a contar a história toda.
É assim: no domingo, por volta das 21 e tais, fui atropelado por um menino de motorizada, que me colheu na pacatez de um passeio na rua da minha mãe, a famosa rua «C-Seis», no não menos famoso Bairro Indígena.
E o tractor do lixo teve uma influência decisiva no desenrolar dos acontecimentos, daí a sua eleição como peça fundamental na composição do relato desse acidente estranho ou, no mínimo, complicoso, como diria o outro, de que fui vítima. Eu explico: as nossas ruas já estão agora todas asfaltadas e tal, mas os chineses «apertaram-nas» tanto que, basicamente, só sobra espaço para uma faixa de rodagem nos dois sentidos, já que a outra serve de estacionamento. É que, apesar do governo, perdão, agora é executivo, impedir a entrada de sucatas, meio mundo lá do bairro vai resistindo com as suas carcaças, pelo que todos os espaços estão quase sempre ocupados. E prontos, é passar à vez, que às vezes é um engarrafamento da silva, é sofrimento.
Pois, como ia dizendo, tinha ido à «C-Seis» rever amizades, matar umas saudades no Zé Manuel, o «Anjo Mau», que até tinha feito anos, já depois de ter dado um «show de bola» no Muzonguê do Kilamba, que tinha cuiado com os Jovens do Prenda do antigamente. E o Ti Borito, finalmente, reaparecera, também ele em grande estilo.
Ah, queiram desculpar-me por estas divagações gratuitas. Onde é que íamos mesmo? Pois, como ia dizendo, é assim que surge o tractor do lixo. Cada cidadão vinha com o seu lixo e punha. A vizinha nova traz dois sacos cheios de lixo, mais os bichos, ui, porra, xé, tirem estes bichos daqui, estávamos na distracção dos bichos, eu bem distraído no passeio da porta do «Anjo Mau», quando, traiçoeiramente, só assusto: pumbas! Voei uns dois metros, indo embater violentamente contra o meu próprio carro, que estacionara mais a frente. Enquanto estive no ar, pensei no pior, teorias de conspiração e tudo. Só podia ser o Macavulo, pensei cá comigo. Ou outro «técnico de laboratório» qualquer lá do Rangel, se calhar destas equipas que estão a organizar as «manifestações espontâneas» contra o «Mata Frakuzx», quando eu não devo ninguém. Ao menos, já paguei as rendas.
«Felizmente» - as aspas têm razão de ser -, o sacana do miúdo, que cheguei a pensar que fosse um terrorista rangelino, apenas me lixou a perna direita. Não partiu, mas fez umas bolas do caraças, que estão a doer p’ra xuxu. Quer dizer, só não houve estragos maiores graças ao «treino de comandos» que tive quando era mais jovem, o que me possibilitou amortecer o impacto da queda – fui ginasta nos idos de 70, tendo chegado a dar umas cambalhotas no 1.º grande festival gimnodesportivo realizado no país, ainda ao tempo do Manguxi, em plena Cidadela Desportiva. Inesquecível.
Explicação para o acidente (sem nenhuma relação conspirativa): o miúdo da moto, não querendo esperar até que o tractor passasse para prosseguir a sua marcha, resolveu subir no passeio, mas a zunir como se estivesse na estrada. E não viu mais ninguém para atropelar, a não ser a este pacato e alegadamente bom cidadão. Fdp!
A sorte do gajo é que os miúdos barraqueiros lá do bairro não estavam na «hora quente» do acidente, senão acabaria por levar uma boa sova até a polícia chegar (é assim que fazem nos bairros), mais ainda por estar a refilar, mesmo depois da borrada que fizera, porque o meu irmão é o Nucho, o meu irmão é o Nucho. «E daí?». Ah, não, ele é jornalista do Semanário Sol. Filho da mãe. Me apeteceu lhe soltar os cachorros, mas acabei por rir de caxexe. Ainda por cima, não tinha dinheiro para pagar uma clínica, quis me levar no «Maria Pia», onde, se calhar, só dois dias depois é que seria atendido, passe o exagero. Não. Xé, vende a moto. Ai, mais velho, desculpa, foi sem querer. Sem querer?!
Acabei por ir à «Espírito Santo», o meu irmão Zeca é que pagou a despesa, eh, ainda não lhe devolvi o dinheiro alheio dele. Aqui, a médica de serviço sequer me tocou, só olhou, mandou fazer um Raio-X e receitou um anti-inflamatório desses da Índia
e lá se foram 150 dólares. Não é muito?
No dia seguinte, ligo a LAC e lá estava o Comandante Salgueiro, meu velho amigo, a dizer no «Táxi Amarelo» que a semana tinha sido de terror em termos de sinistralidade rodoviária. Havia morrido muita gente. Falou dos números, mas não mencionou o atropelamento de que fui vítima. Nem tinha como. E assim fiquei fora dos números. «Como tu, mais uns cem terão tido a mesma sorte», disse-me a Luísa Rogério a propósito. Possível.
Nem toda a gente com quem falei descartou a hipótese de poder ser um «atentado terrorista», mas, mesmo assim, acabei por tirar o Macavulo da cabeça. Ele até é meu amigo.
Só não perdoo o atropelador, que, apesar de ter sido deixado em paz (lhe entreguei a moto dele sem esperar que viesse pagar a despesa), também por ser, afinal, cunhado de uma amiga minha, por não se ter dignado em tentar saber como tinha passado a noite. Ingrato de merda. Vem mais outro dia, vais ver. Fdp! ■ Crónica
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