Para os Ovimbundu, nunca é extemporânea a visita quando se vai pela primeira vez consolar alguém pela morte de um ente querido. (“Onambi yapita ño kuyu wayipasuile”, ou arriscando na tradução, o óbito só acaba para quem o tiver visitado). Como exemplo, meu pai faleceu em 2001. Cinco anos depois, alguns parentes apareceram em casa com uma estridente choradeira, como se o cadáver ainda lá estivesse. Por um momento, refilei em silêncio: que chatice deve ser agora para a minha mãe, a viúva, “reacender” o óbito…!
Ao contrário do que um ex-colega filipino de nacionalidade interpretara, óbito aqui neste texto não se refere ao funeral mas sim à cerimónia no seu todo, em que familiares e pessoas mais próximas se reúnem durante sete dias em casa do finado, culminando com o varrer de cinzas.
De folga no serviço e após breve visita à obra da casota, meti-me a caminho em companhia da kota (irmã mais velha) para ver o amigo Don Refer, cujo bebé de nove meses de idade foi sepultado anteontem. Don Refer, nome artístico de um cantor que procura lugar ao sol, é dos primeiros amigos que conheci quando em 1987 fomos morar para o bairro da Santa-Cruz, no Lobito, tendo depois seu irmão mais velho casado com uma de minhas irmãs.
Por muito macabro que possa soar, é factual que os óbitos servem de oportunidade para reencontros, dinâmica que é a vida no meio urbano e de tão desencontradas as agendas. De modo que falamos de tudo. Nisto surge Katele, promovido pelo jeito alcoólatra a (des)animador de óbitos. Com um faro facilitado pela pequenez das comunidades suburbanas, localiza óbitos, manda umas bocas (quantas vezes inconvenientes!), come, bebe e vai. Contam-se pelo menos três em tal categoria (para o meu desencanto, já digo porquê), no bairro que morei até 2008.
Dois desses (des)animadores são do meu tempo, com bom rendimento escolar, o que aliás ainda sobrou na articulação gramatical e no raciocínio lógico, apesar do efeito etílico e aspecto farrusco. São ambos um pouco mais novos que eu, com quem partilhei quilómetros entre a casa e a escola. Com o Katele, inclusive, e o que mais me custa aceitar, suportamos longas filas e a rabugice do sol para receber refeições nas cozinhas humanitárias do PAM, durante a crise humanitária pós-eleitoral de 1992. Anos mais tarde, veio a curva apertada da opção de embarcar para Luanda, onde se diplomou na escola dos vícios. Hoje tem a velhice tingindo de branco suas barbas, rouquidão na voz, e a ilusão de se achar no estatuto de mais-velho que seus mais-velhos. O segundo é, tal como o Katele, ex-acólito, que depois foi para o seminário, visto pela família como vocacionado para padre. É, diz-se, bom pedreiro, mas está sempre “acamado”.
Redutora como é a visão de um embriagado, Katele mandou a todos calar, menos a mim, o único que a seu ver dominava a língua inglesa e seu “teacher”. Conversa mais conversa, a possível, claro, ele justificou o seu deprimente (para mim) estado pelo facto de ser órfão de pai e mãe. Cuidei de logo lhe lembrar que Don Refer era igualmente órfão de pai e mãe, mas que se preocupou em conseguir trabalho, tem mulher e filhos, concluiu o ano passado a nona classe e quer ser cantor.
Não é de agora pois que as obras, enquanto seguem o curso da vantagem, exalam na mesma direcção transtornos em arco-íris.
Gociante Patissa, 19 Fevereiro 2011
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