quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Conto: "O Temível"

Nota: excepcionalmente publicado no Angodebates em apoio ao jornalista Celso Malavoloneke (foto: Club-k).

— Onde habita gente, há sempre alvoroços. Por isso, existe a polícia, quero dizer nós, para assegurar a ordem! Mas quando uma testemunha aparece em todos os casos a registar, a coincidência estatística deixa de o ser, torna-se pista. E quando essa testemunha é apenas uma assinatura, está instalado o drama. “O Temível”, um autógrafo de misteriosa omnipresença, que mexia com o sono de qualquer um naquela vila — contava D. Judith.

Qualquer coisa contada por D. Judith — que, convém explicar, fazia questão de não mais ser tratada por «Comandante Dith», tendo em conta que, naquele exato dia, ela passaria à reforma — tem sempre um sumo peculiar. Era capaz de pôr um cágado a ganhar maratonas nos jogos olímpicos de atletismo, tal é a forma como abre os olhos, esperneia, ajoelha, bate o murro na mesa, e tudo mais se necessário, para dar vida ao relato! É muito provável que tenha escolhido a profissão errada. Uma comandante policial não seria de prender a atenção das pessoas no fluir da voz, ainda por cima sensual.

Mulher prática e líder de esquadra apaixonada. Peito erguido, cabelo a rapazinho. Daquelas cidadãs que preferem a companhia do braçal, no piquete, ao aconchego do marido, no colchão do lar, sempre que em causa esteja a tranquilidade pública; polícias de corpo e alma. Assim era D. Judith. Repito, ser-me-ia mais fácil, e até justo, tratá-la pelo título «Comandante Dith», mas exigia ser tratada por D. Judith! Acreditava que tal facilitaria a adaptação à vida civil, uma passagem que vinha adiando (desde que, há dezoito meses, recebeu a ordem de despacho), enquanto não desvendasse o mistério do “Temível”.

Pouco depois de iniciado, o relato sofria interrupção. Era hora do café, que a secretária servia com pontualidade orgânica no apertado gabinete, sem falhar uma única vez em vinte e cinco anos. D. Judith, como sempre, agradeceu com uma vénia, enquanto o comandante substituto aguardava, ansioso, pela retirada da secretária e consequente
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regresso ao conto “O Temível”. Eu também, de caça-palavras em punho, mal podia esperar — era a minha oportunidade de caprichar num artigo para o Jornal de Angola e ser promovido a correspondente efetivo.
— Uma localidade, não importa quantas ruas possa ter, divide-se sempre em três partes… e meia, digo. A entrada, a saída e o centro. A meia parte é geralmente o descampado onde a coletividade vai fazer as necessidades maiores assim que a noite cair.
— Curiosa esta geografia, não? — disse, sorrindo, o novo comandante.
— São lições do tempo, comandante. — assegurou D. Judith.
— Claro, prosseguindo…
— Um camião, que vinha da Alta, na entrada, perdeu os travões. Matou duas senhoras e um catequista. O motorista era um miúdo de 14 anos.
— Como assim, comandante?! Até onde vai o…?
— Era um aprendiz de mecânico que queria impressionar a namorada. Para ludibriar os nossos agentes, escreveu «EXPERIÊNCIA» num papelão e aplicou no focinho do camião.
— E houve testemunhas?
— Houve e não houve. O que encontramos, a única coisa consistente, era uma assinatura a vermelho feita com spray em jeito de graffiti: “O Temível”. O resto era testemunhos desconexos, aquilo a que chamo de fontes poluídas.
— Quem viria a ser esse temível? — questionou o novo comandante.
— Neste dia, não demos importância.


Uma pausa obrigatória na conversa. D. Judith saía em defesa do seu café, que corria o risco de arrefecer. E como se tivéssemos combinado, estávamos os três com os olhos alcançando o teto, numa obediência à lei do gole.
— Algum tempo depois, uma velha foi violada quando vinha da sentina. Fomos ao local e encontramos a mesma assinatura: “O Temível”.
— E deixou algum rasto, digo, para além da assinatura?
Gociante Patissa
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— Não, comandante. “O Temível” era só testemunha fantasma. Numa operação simples localizamos o infrator. Era o genro da vítima, traído pela escuridão. A esposa estava de parto fresco… e ele queria uma via rápida…
— Então, mas que raio de pessoa era esse Temível, que estava sempre no lugar certo, na hora certa, sem impedir o crime de acontecer?
— Por aí começava a nossa dor de cabeça, como polícias. Fazia sentido associar a assinatura “O Temível” com a onda de criminalidade, nunca antes vista na vila. E justamente nesse impasse, vai-me logo surgir, assim do nada, um cidadão que se arrogava de ter a resposta. Não foram poucas as vezes que me deu uma gana de algemar o gajo, que era um subversivo do caraças.
— Que tese defendia esse cidadão?
— “O Temor a Deus é o princípio da sabedoria”, logo, “eram sinais dos tempos” (Provérbios 19:23 “O Temor do SENHOR encaminha para a vida; aquele que o tem ficará satisfeito, e não o visitará nenhum mal”).
— E com isso, a canção do arrependimento, da fé, do dízimo, certo?
— Se dissesse que não, o comandante acreditava…?! — retorquiu, irónica.
— Pois é, continuando…
— Os crimes continuaram a ocorrer e, como era de esperar, a assinatura “O Temível” chegava antes da polícia. O charlatão comovia cada vez mais seguidores, visto como um profeta que pregava ao vento num mundo de materialistas teimosos. O número de fiéis cresceu até formarem a Congregação do Princípio e Anúncio da Sabedoria (COPAS). Já a nossa reputação perante a população é que andava abaixo de zero. Como diz aquela máxima: “quando acertamos ninguém se lembra, quando erramos ninguém se esquece”.
— Sempre o dilema: como louvar uma polícia que tarda em esclarecer casos de crime, né?
— Ora, nem mais! Mas, com o tempo, a minha intuição alertava: tinha que haver alguma ligação entre o profeta e os crimes.
— Bom, mas ele tinha algum antecedente criminal?
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— Não por acaso, ele sempre respeitou os semáforos. Mas como entender… a mesma letra, a mesma palavra no local do crime “O Temível”, e o mesmo argumento de sinais dos tempos, o mesmo cinismo do profeta?!
— É… — tentou dizer algo o comandante, mas viu que o melhor era calar.
— E justamente nesse impasse, para usar o seu termo, saía a ordem de despacho para a sua reforma, comandante?! — provoquei.
— Vê lá tu o meu azar. Abandonar o comando da investigação era como se os trinta e tal anos a vergar a farda do interior não valessem a pena. Algumas vezes sentia que estávamos muito perto da verdade, mas quase sempre regressávamos ao ponto zero. E esses avanços e recuos, mais recuos do que avanços, só reforçavam a minha desconfiança: era um crime cuidadosamente preparado, com todos os pormenores para ludibriar a polícia. Quando olhei para o calendário, já um ano tinha ido p’ro caraças… O profeta, este sim, prosperava. Até casa própria de construção definitiva, ele tinha.
— E… um ano é tempo considerável quando os negócios correm bem…
— Negócios. É essa é a palavra. O profeta vendia a preço d’ouro a sua fórmula de fé, tal como os brasileiros vendem sentimentos, os americanos a democracia…
— Essa é boa, D. Judith, até vou usar no meu artigo. — voltei a provocar.
— Fica descansado, que não te vou cobrar direitos do autor até te tornares profeta. — depois de uma curta risada, continuou:
— A casa era só o começo. O profeta, que no princípio usava uma bicicleta, foi aconselhado pelo conselho de anciãos da COPAS a adquirir um meio de transporte mais seguro. Um carro. Fez-se, então, uma ordem de saque. E do Dubai veio um Hummer verde, a cor da esperança, que respondia bem aos desafios da evangelização até aos confins da terra (“E não vos esqueçais da beneficência e comunicação, porque com tais sacrifícios Deus se agrada” Hebreus 13:16). O novo estatuto lançou nos olhos do profeta a ramela das grandezas, tanto que se esquecia de descer da viatura para saudar os irmãos. Só buzinava ou fingia olhar para o outro lado. Foi então que surgiram fiéis descontentes, o que era uma oportunidade para as nossas investigações. E alguns relatos dos excessos do homem eram hilariantes. Conta-se que uma senhora, que se dizia aflita tanto quanto o marido, porque nunca mais engravidava, foi ter com o profeta. O pastor, confundindo os seus limites e numa clara manifestação de ignorância, garantiu: “A senhora vai engravidar hoje mesmo! Vou orar com fervor”. E olha que nem sequer procurou saber de eventuais antecedentes de problemas de saúde, se a mulher estava no período fértil e muito menos se o marido estava presente. Será que a fé era determinante para o surgimento de uma gravidez na data em que ele, o pastor, pretendia? O outro caso foi do cidadão que se queixou da humilhação. Foi visitar o pastor, e este pediu que o irmão se levantasse do sofá para deixar o lugar… que era do cão…


Mas acontece que o Hummer servia também para outros fins alheios à evangelização, tipo sair com raparigas para curtir. Numa bela noite, o profeta foi ao mais discreto descampado da vila com uma menina. Lá estavam em pleno filme, quando foram surpreendidos por dois meliantes armados. Estes recolheram o dinheiro, outros bens, e violaram a menina. Não estando satisfeitos com isso, baixaram as calças do profeta e puseram-no no colo, como as mães fazem na hora de colocar pó talco no traseiro do bebé. Só que foram mais longe. Aproveitaram-se do ânus do profeta também, deixando-o inflamado o suficiente para não conseguir sentar. No final, ainda restava spray para escrever à volta do carro “O Temível”.


Foi então que o profeta procurou a polícia para contar a sua verdade. Ele próprio criara a marca através da instrumentalização de quatro jovens, aproveitando que uma localidade, não importa quantas ruas possa ter, divide-se sempre em três partes… e meia. Logo, o primeiro atuava na entrada, o segundo na saída, o terceiro no centro e o quarto nos lados da sentina, o descampado onde a coletividade vai fazer as necessidades maiores assim que a noite cair. Quatro unidades de spray e uma patrulha discreta chegavam para sacudir a vila com o alarmismo. Infelizmente, para o profeta, a arma fugira do controlo do inventor, a marca “O Temível” ajudava outros oportunistas.


In "A Última Ouvinte", Gociante Patissa & União dos Escritores Angolanos, 1ª Edição, Luanda , 2010 (versão com base no novo acordo ortográfico)
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