domingo, 27 de junho de 2010

Para debate: "Uma estranha obsessão oficial pelo kuduro" - artigo de opinião do jornalista Ismael Mateus

Ouvindo-se a música de Teta Lando, Elias Dia Kimuezu, Rui Mingas ou de Artur Nunes, para apenas citar estes, abre-se em nós, claramente, o limite, a fronteira entre as músicas chamadas de clássicos e as outras chamadas de descartáveis. Por muito tempo que passe, os clássicos continuam a ser admirados, ouvidos e reouvidos. É arte musical. É uma cultura representa-da e representativa naqueles três a cinco minutos. 

Não encontramos nada disso na música descartável. Aliás, a música descartável é unicamente sinónimo de sucesso e dinheiro. Consome-se enquanto não aparece outra. Entendemos que to-dos tenham o direito a procurar, a querer e a lutar pelo sucesso imediato porque ele é sinónimo de dinheiro e fama.

Exactamente por ser assim, é dever do Estado, através da entidades que representam a cultura nacional e dos órgãos que a divulgam, separar o trigo do joio e não confundir o bom com o que é amplamente consumido, nem o mau com o que não é comercial. Temos assistido a manifesta-ções particulares de apoio ao ku-duro feitas por figuras do Estado e de grande representação politi-ca nacional. Não há, obviamente, nada contra isso. Cada um gosta e ouve o que quiser.

Temos, porém, já mais reservas quando começamos a ouvir tantas pala-vras oficiais de incentivo a esse género musical. A comissária de Angola na Expo Shangai, Albina Assis, fez um rasgado elogio ao kuduro como música angolana do momento, justificando a opção de o levado àquele palco de amostra da cultura angolana. O adido cultural de Angola no Bra-sil idem aspas ,falando do que realmente mais ‹‹se vende›› de música angolana naquele país. Temos também assistido a uma certa cumplicidade ‹‹oficial›› do ministério da Cultura, de críticos e sobretudo dos canais de televisão do Estado. O ‹‹Sempre a subir››, de Sebem, tem mais espaço no Canal 2 da TPA que qualquer outro programa musi-cal.

De resto, é o único programa com direito a transmissão e re-transmissão na TPA Internacio-nal. O kuduro também já che-gou aos programas de línguas nacionais, que eram redutos da música tradicional e de raiz. Há um ‹‹abre alas nacional e oficial›› ao kuduro que é absolutamente revoltante e bacoco. Começa a ser frustrante e assustadora essa obsessão nacional pelo kuduro. Não há aqui nenhum saudo-ismo nem conservadorismo. Os tempos são novos e a juventude tem grande criatividade. Porém, deveríamos todos ter mais serenidade, mais respeito até por nós mesmos, pela nossa cultura, antes de elevarmos à ‹‹música nacional›› um género absoluta-mente descartável. 


Nada impede que amanhã o kuduro possa vir a ser o género mais representativo da música angolana. Um caminho desse tem de ser feito com tempo, com paciência e, sobretudo, com trabalho, muito trabalho, dos músicos e artistas. O imediatismo do kuduro e toda a sua estrutura, a melodia, o tex-to e as vozes são demasiado pré- fabricados e improvisados para que alguém o eleve já a tão alto estatuto. Na maior parte dos ca-sos, com todo o respeito por pro-fissionais bem localizados, ainda nem sequer é música.

Claro que vimos criticando a imprensa audiovisual pela pro-moção desmedida ao kuduro. Como os próprios kuduristas, as rádios e os canais de televi-são que se renderam ao kuduro buscam apenas o interesse co-mercial imediato, como se fosse uma música do tipo fast food, take away. Não temos dúvidas de que o kuduro é antes de mais um produto da mídia e das casas nocturnas. Talvez seja até mais um produto social do que cultu-ral, o que não impede que o ve-nha a ser. É um modismo. Já foi assim com a chamada kizomba. Afinal não acabou com o semba e, pelo contrário, já está em ex-tinção, tanto no número de auto-res que a cantam como de músi-cas que se fazem.

Como todos os modismos, o kuduro vai passar e dentro de alguns anos já nin-guém se lembrará de alguns dos nomes mais vibrantes de hoje ou então, também pode aconte- cer, se irá transformar em algo sólido, mais trabalhado, mais consistente do ponto de vista artístico. Aqui começa a irresponsabilidade nacional quando entidades oficiais, com responsabilidades culturais no país, se rendem ao kuduro como se ele fosse uma produção artística, o que não é, e, pior, como se ele fosse já um digno representante da nossa cultura, o que também não é. Somos muito mais do que uns gritos ao microfone, uns acordes de sintetizador e uns coros desafinados. Valemos muito mais do que isso e temos mais riqueza cultural do que isso.

Não sejamos ingénuos: quanto mais o público nos candongueiros, nas discotecas e nas festas aceitar que esse tipo de música entre em suas casas, mais jovens vão aparecer todos os dias a fabricar novas ‹‹relíquias››. Talvez seja mais uma questão social de afirmação e de diálogo juvenil com a sociedade do que propriamente um projecto cultural como hoje se pretende fazer crer. Quanto mais jovens aparecerem mais uma determinada mídia divulgará, promoverá esses produtos descartáveis.

Quanto mais tempo se der a essas músicas menos espaço haverá para outros géneros, agora transferidos para a segunda divisão. É um completo absurdo! Alguém tem de ter a lucidez de promover mais o Vozes do Semba ou criar espaços para outros géneros esquecidos do nosso país, antes de nos ‹injectarem essas doses exageradas de kuduro, que, na verdade, só está na crista da onda, não porque é bom, mas porque dá ‹‹Money›› para os bolsos dos ‹‹empresários›› e produtores de CDs caseiros. A verdade é que essa opção pelo kuduro, ao invés de géneros genuinamente representativos e arraigados em nós, empobrece a música angolana.

O Estado, que se deveria bater para promover o kilapanga, o semba, a mbuenzena ou a tchianda, prefere entrar na onda e embarcar no imediatismo do que se vende. O kuduro faz agora parte das comitivas oficiais, o que dá de nós e da nossa música uma visão de absoluta decadência. Trata-se de uma decadência aparente porque ela não é real, mas apenas o que nós mesmos estamos a dar a ver. Quando olhamos para o esforço que muito jovens estão a empreender cantando géneros da cultura angolana, quando ouvimos Os Ndengues do Kota Duro, Os Makambas, Vozes do Nambua, Sassa Tchockues, Duo Canhoto e toda essa riqueza melódica que temos, não podemos senão admitir que essa imagem de decadência que se leva ao mundo com o kuduro não é real. Só deveria engajar quem a promove lá fora. Infelizmente não é assim.

Passamos todos por ser do país do kuduro. Os do kuduro. Temos Bonga Kuenda, Yuri da Cunha, Paulo Flores, Dodó Miranda, Wyza ou o grande Gabriel Tchiema, cuja música tem hoje possibilidades reais de internacionalização, e vemos, com tristeza, uma capitulação ao kuduro. Não tarda, para vender e para agradar as autoridades oficiais, esses músicos terão eles próprios também de capitular face ao kuduro, se é que ainda não o estão a fazer. É tudo demasiado louco, num país com tanta riqueza musical. 

Quando nos referimos à falta de representatividade do kuduro queremos significar, específicamente, que ele não serve de elemento constituinte básico para a formação de uma unidade nacional. É uma expressão cultural que não nos oferece uma memória a ser compartilhada nem símbolos capazes de produzir um eficiente nível de coesão social. Temos casos da música mundial em que grande géneros de hoje começaram por ter exactamente os mesmos problemas e a mesma origem marginal que o kuduro e por isso não seria nada de novo se entre nós houvesse uma evoluçao de algo sem memória para um produto que vá ganhando gradualmente um substrato nacional. Nesses casos foi preciso trabalho, tempo, profissionalismo e integra- çao de valores.

O problema é que neste momento, e estamos a falar apenas dos dias de hoje, o kuduro não se consolidou o bastante para ter o estatuto que se lhe quer dar como género musical superior, representativo e que quase homogeneiza a nossa estrutura musical, se é que existe uma única como tal. Mais do que os receios da entronização do semba como símbolo único da música angolana, estamos hoje perante algo maior que é a vulgarização consumista da música angolana. Sentimos nas estações públicas de rádio e de televisão e nos meios de decisao oficial uma tendência para o descompromisso com a cultura angolana, o que nos deixa verdadeiramente preocupados.

Mais valia sermos vistos como o país do semba – o que também é errado – do que como o país do kuduro – o que sendo, é verdade, não dá de nós uma ideia e uma imagen de povo com cultura própria, com expressão musical articulada e coerente. Pelo kuduro passamos apenas a ser um povo de vulgares consumidores de hamburguers musicais. 
In http://semanario-angolense.com/home/semanario_angolense_373.pdf
Share:

3 Deixe o seu comentário:

Amélia Ribeiro disse...

Olá Amigo Patissa,

Tens no meu blog uma entrada referente à amizade entre pessoas de diferentes países e, se quiseres, um selo referente à mesma, que foi criado pensando em alguém como tu, pois, ainda que não te conheça pessoalmente, considero-te meu amigo.

Um beijo e boa semana.

Soberano Kanyanga disse...

Patissa,
vleu a iniciativa de trazer para a tua pág. o debate-reflexão levantada pelo I.M.
Tentei na semana passada cantar para minha filhota de 2 anos os clássicos do nosso tempo de infância "a galinha comeu a barta e o gato goloso comeu a galinha"... nada. Tudo o que faz o mundo dela é " lhe dá, lhe dá".. já xtá xeio e outras babuzeiras. Lamentavelmente é o que mais se difunde como se de matéria acabada fosse...
É oporyuna a reflexão aqui trazida.
Abraço
Canhanga

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Pois, Canhanga, c a honestdad q se impõe, Ismael não deixa d tr razão quanto à excessiva(?) visibilidade q se dá ao kú-duro. Não sou formado em comunicação social, penitenciando-me pr isso por eventual ignorância, mas é insultuoso qdo pessoas formadas (no caso específico, lá fora) e c sociedades mais alfabetizadas nos vêm dizer de boca cheia (de quê?) que a TPA tem é que continuar a apostar em programas meramente de entertenimento "porque é o que a juventude quer", com base em estudos por si conduzidos. O que essas pessoas não dizem é que o "exótico kú-duro" não é feito pelos seus filhos, por sua vez com acesso à boa formação académica, para lá da latente alienação. Quanto ao canal TPA Internacional, gostava de saber o critério de ser retoma do canal2. Acho que, com todo o respeito, o ku-duro, o Tchilar, o Sempre a Subir, entre outros, não se podem arrogar de serem rpresentatvos dos angolanos. A isso se soma a promoção dos famosos "beefs", uma forma inconscient de agitar a já iminent agrssividade de grupos socialmente menos abastados. Não odeio o ku-duro, que julgo até já ter tido o momento mais alto com a "era Dog Murras"...

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas