Ao terceiro soar do sino, os habitantes todos da Casa de Passagem dos Assuntos Sociais foram ter ao pátio. Logo formaram duas filas em arco para ouvir o que o líder tinha a anunciar.
— Família! Com a permissão da enfermeira, incumbe-me anunciar a chegada de um conterra, que precisará da nossa camaradagem na recuperação.
Nesse instante, Veremos descia do tractor dos Assuntos Sociais, titubeando no manejo das muletas. A recuperação era surpreendente e visivelmente enchia de orgulho o corpo médico. Todavia, costumam ser dois os principais choques de um recém-amputado de membros inferiores: um, a dor de não ter feito diferente no momento que antecedeu o acidente e, outro, depender das muletas. Os demais observavam-no com empatia, cada qual revivendo o que custou a primeira vez em que voltou a estar de pé. Sentiam a dor dele, mas era contra os princípios ajudá-lo a se erguer. Não fazer pelo outro o que ele pode sozinho cura a dependência. Inesperadamente, a enfermeira aproximou-se para ajudar, carregando a trouxa de Veremos. E o Chefe da Casa prosseguiu:
— Chama-se António Veremos. Foi vitimado por uma mina. Só conta connosco nesta vida. Cada um aqui sabe como custa viver outra vez. Enquanto espera pelo cartão de dotação alimentar, entrará na nossa panela. Tenho dito e vos aguardo na familiarização com o conterra, após o jantar!
— Assim seja! — responderam em coro e voltaram aos seus afazeres.
Veremos deu uma volta à casa e desenrascou uma canção:
Ainda ontem
inalei madrugada
já hoje
ar condicionado somente
Oh, que puta sobrevivência!
nota fúnebre:
Estou de volta
se a vida ainda me quiser
Ainda no primeiro dia, Veremos absorveu o espírito solidário da Casa do Deficiente, como era comummente chamada. Pessoas de várias origens, idades e histórias de vida, mas com algo em comum: a deficiência, marcas da guerra. Todos eram automaticamente uma só família. Bom, isso era uma coisa (pondo de parte os eufemismos), bem diferente de suportar tanta gente num armazém sem paredes. O fim da tarde era o mais infernal, com tantos gritos de gente possuída pelo álcool. Só de homens, contavam-se vinte, metade destes com mulheres e três filhos em média. Lamento de mutilado depaupera quando é repetitivo, pior ainda para um recém-chegado.
Apesar do nome, a casa não era forçosamente de passagem. O Chefe, por exemplo, a quem cabia acomodar os novatos, residia ali havia mais de dez anos e não tinha pretensões de sair. Os Assuntos Sociais davam dotação alimentar mensal, que por sua vez acabava antes do dia 30.
Na segunda semana, o Chefe da Casa chamou António Veremos para a segunda etapa da recepção. Esclareceu que a dotação era insuficiente. Cada cabeça recebia cinco quilos de fuba, um de sal, dois de açúcar, três de feijão, um litro de óleo, dez tábuas de peixe seco e uma barra de sabão. Por isso, era indispensável ir à rua pedir esmola.
— Aqui, família, somos caçadores de caridade. — disse-lhe o Chefe da Casa. — Como os calos das muletas já saíram, vais começar comigo.
— Ok, conterra. — concordou Veremos, tomado subitamente pela memória dos tempos de próspero empresário da FBI. Certa vez, e já na defensiva ante o jogral de mendigos à porta da pastelaria, só depois de dizer «não tenho nada!», notou que ainda nada lhe haviam pedido. — Então, mas os que têm ofício já tentaram procurar emprego?
— Ó família, a bicha do emprego é longa, quase não anda, e o mutilado se cansa de tanto tempo de pé numa só perna.
— Por isso, parente, a qualquer gajo que me pedisse opinião, sei bem o que diria. E é há muito que o sei: um “NÃO!”, que a guerra é a maior porcaria.
António Veremos revelava-se desajeitado com a caça de esmola. Dir-se-ia que era muito distraído, levando, por consequência, o dobro do tempo habitual para aprender a bumbar sem supervisão. Uma vez superada esta etapa, surgia outra tensão entre o aprendiz e o instrutor. Veremos abandonava frequentemente a labuta antes do pôr-do-sol, que era a fértil hora dos funcionários voltarem do serviço. O Chefe acreditava que a crise seria passageira, mas estava enganado.
— Ó família, o quê que se passa contigo afinal?
— Fiquei cansado, essa merda de muletas dão cabo dum gajo…
— Desculpa, mas isso é mentira! Tu achas que não sou mutilado, também não passei pelo que estás a passar?! Tu não és criança, o trabalho dignifica o homem, pá!
Entretanto, António Veremos não mudava. Já não era apenas a questão de abandonar cedo o posto de esmola, passou mesmo a não pôr lá os pés. Tornou-se algo misterioso. Saía de manhã e regressava à noitinha.
Cansado dos raspanetes do Chefe da Casa, Veremos contou-lhe a história de Rita, sua fulminante paixão, que deixou de ver na viagem do acidente em que ele perdera a perna. Estaria morta? Teria recebido alta e regressado a Luanda? Era a procurá-la que passava o dia espreitando em salas hospitalares e postos médicos. O relato veio a terminar num ambiente gélido face à reacção do companheiro:
— Porra, pá! Deixas de bumbar para ir atrás duma puta, que não se importou contigo?! Se é sexo, há mulher na casa, mas com kumbú na mão.
— Epa!, calma ali! Primeiro, puta é a tua avó! Segundo, você não sabe se ela está morta ou não! Quem és tu, ó cara do caralho?!
— Eu te recebi pensando que és homem! Não posso é sustentar um preguiçoso, que se comporta como adolescente e não produz…
— Chefe, vais p’ra’puta que te pariu! Eu também já fui alguém, ouviste?! Nem tu nem ninguém decide, se procuro a minha mulher ou não!
O Chefe da Casa ainda foi a tempo de dizer que «o passado só valeu a pena se não nos impede de continuar a viver». Mas será que foi ouvido? Veremos recolheu os haveres e instalou-se nos escombros do Mercado. Solitário, mas independente, como gostava, como sempre viveu. Continuou procurando pela mulher, mas esbarrava sempre na mesma pergunta: «Rita de quê?». E, infelizmente, ele desconhecia o sobrenome.
Passou a esconder-se no copo, bebendo muito, e quase sempre, comendo pouco, e de vez em quando. E não demorou muito para ser acometido por uma tuberculose. Achando terreno fértil no sistema imunológico de Veremos, a doença deixou-o assustadoramente escanzelado. A dada altura, ele cheirava a morte. E convenceu-se de ter somente uma saída para continuar a viver. Então, regressou à Casa de Passagem, por menos que gostasse da ideia de ser rejeitado pela ex-família.
Ao vê-lo chegar, o Chefe abandonou o que fazia e estendeu o abraço:
— Meu, camarada! Quê que está a te matar?
— Parente, desculpa, errei…!
— Oh, família, eu também agi mal… Somos conterras, fodidos pela mesma guerra. Tu és aleijado, sobrevivente como eu, custe o que custar!
Abraçaram-se militarmente e chamaram o tractor, que os levou à consulta no dispensário dos padres. No mesmo dia, Veremos iniciou o tratamento. Estava garantido o princípio da cura. Brilhava outra vez o sol.
Gociante Patissa, Lobito, 31 de Dezembro de 2009
(*) Capítulo nº 6, do projecto de romance (?) “António Veremos, O Veterano” (na forja). Quatro capítulos (cada com título próprio e apresentado como conto) do tal projecto fazem parte de uma antologia em fase avançada, cujos detalhes editoriais revelarei a seu tempo.
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De Março-Maio de 2006, creio, trabalhei para a Handicap international, ocupando o posto de Assistente da Coordenadora do Projecto de Reabilitação Baseada na Comunidade (RBC). Como 2ª pessoa do projecto, eu acompanhava equipas de activistas e mobilizadores, bem como inquiridores, na Damba-Maria e Kamunda, município de Benguela, e outra equipa do Cubal. o contacto com o grupo-alvo não estava fora de questão. DM, particularmente, acolheu várias famílias de deslocados internos ao longo do conflito armado, sendo por isso acentuado o número de pessoas com deficiência. E porque já não é mais inconfidência, uma das dificuldades que enfrentei foi lidar com o inconstante estado emocional de alguns mutilados, a começar mesmo pela sua dependência ao álcool. Uma senhora, também ela mutilada, disse certa vez ao meu gravador de repórter que, "ao contrário dos que nascem com a deficiência, um mutilado tem sempre presente a frustração". Esse texto particularmente exigiu uma consulta de poucos minutos ao amigo Luis Quintas Xavier, da LARDEF-HUAMBO, a quem volto a agradecer.
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