segunda-feira, 28 de julho de 2025
sábado, 26 de julho de 2025
A guetizaçao dos fazedores locais de expressão artística e cultural só prejudica a diversidade, ó 🇦🇴. Nem tudo é semba e kuduro, nem toda a parte percebe kimbundu. O que dirão os Khoi e os San? Os concertos apadrinhados pelo Estado/Governos provinciais devem conferir a mesma dignidade a todos. É o que continuarei a defender
quinta-feira, 24 de julho de 2025
Conto | AS MÁSCARAS E O CASTIGO DIVINO (inédito de Gociante Patissa, publicado na Revista Ngapa, edição 002, 2025
Gociante Patissa
«Se choramos aceitamos, é preciso não aceitar»
(António Cardoso)
Chamo-me Silvestre.
Silvestre Kanjaya. Todo o mundo me chama Semestre, inclusive a minha sogra. Se
me perguntam a partir de que momento passei a ser o Semestre, pouco sei dizer. Na
verdade, absolutamente nada, exceptuando a hipótese da praga de castigo divino
que um antigo empregado meu me rogou, andava eu na casa dos vinte e coisa anos,
quando em boa hora dei por findo o contrato por período experimental do rapaz a
coberto da lei num distante segundo semestre.
Voltou-me as costas e
partiu. Sem esboçar um aceno de despedida. Nem Deus saberia controlar a ira com
que expeliu a praga, depois de se assegurar fora do alcance. Ainda tentei ir
atrás e solicitar que fosse mais específico, doseasse o castigo divino que acabava
de plantar no meu destino. No instante vi-me tentado a intuir, porque me
favorecia, que seriam palavras da boca para fora, uma máscara do mau perder,
contra a minha, a lei laboral. No fim das contas, homens são as máscaras com
que se impõem consoante a circunstância.
Que me perdoem se for
apenas paranóia, é que eu repugno a coincidência com que as minhas desgraças
têm lugar desde aquele insosso dia. Justo no decurso de segundos semestres,
sempre assim, mas é que é assim sempre! Eu e os segundos semestres não
servimos.
Aos 62 anos de idade a
gente percebe que o grau de expectativas na vida do homem é e deve ser
proporcional ao nível de testosterona em si. Se “ser jovem e não ser
revolucionário é uma contradição genética”, na lei da vida segundo Guevara,
pois então nas entrelinhas não deixa de morar o inverso. Quanto a mim, tenho
uma família e não me queixo. Só não queria morrer sem ter acesso com a
transparência que me é devida ao saldo do prometido castigo divino. Terei
sofrido já o suficiente ou ainda está para chegar o dito?
Já estive perto de realizar
o sonho de casar uma filha quando completei meio século de dormires e
acordares. Foi aí que percebi que a esposa que Deus me deu, a minha amada
Ndyondyo, pode bem ser o próprio castigo. Em má hora lhe confiei a aproximação
com potenciais genros. Até já imagino o diálogo:
–
Mas,
filha! Esse vosso namoro afinal é como, tanto tempo que até já passou – estou a
contar mesmo bem – do total dos anos que andou cá o colono português?
–
Assim
mais é o quê?! A mãe também chateia muito…
–
Chateia?
Mas isso mesmo é homem, que nunca só dá pelo menos a cara nas pessoas que
trouxeram ao mundo a miúda que constantemente faz com ele…?!
–
MÃE!,
faxavori, pára só, ya?! Estou a ver já aonde estás a ir com a conversa…
–
Estou
cansada, filha! Tu dormes com o inimigo!!! Porque é essa a palavra. Ah porque
fomos no KFC, que jantamos churra. Ó filha!!! Já viste como entre ti e o frango
não há diferença? É só comer… não se pergunta mais pelos pais…
–
Não
exageres só, mãe! Ele vai cumprir com a tradição. Há-de chegar o dia…
–
Esse
dia então é quando?! Mas já foste ao quarto dele. Ou não?
–
Claro
que já, né, mãe?!
–
E
quem construiu a casa lá?
–
Mas
para quê que vou saber isso… se não sou pedreira?
–
Tásaver
a ver nossas filhas?!… É só ku-duro nesta cabeça… Lá ninguém te valoriza, senão
te contavam a história da família.
Nesse dia que vos conto
encontrei um clima carregado entre a mulher e a minha primogénita. Não se
passava nada, bem tentaram disfarçar, só que eu conheço o olhar delator da
minha Leocádia desde quando nasceu. Orientei então a companheira a não deslocar
a menina para a nossa época. Mais paciência! Algum tempo depois e já no segundo
semestre...
–Mãe!
Não viste a visita?! É assim que se atende?! Depois fala que não apresento…
–
Esse
assim é quem mais?! É outro a cobrar a dívida do cabelo brasileiro que a alma
d’outro mundo que é o teu quase-namorado promete assumir e nunca chega a
pagar?!
–
MÃE!
Ca-la-a-boca! Por favor, não me faças entrar no chão…
–
Será
que falei demais, né?…
–
É
ele…
–
Ele
mais quem, então?
–
O
meu boy. Finalmente estás de cara a cara com ele! Boy significa namorado.
–
Ah,
entendi… Namorado que só ocupa, não toma decisão de casar, então é boi, né? Eu
diria, até, boi malandro! Mas pronto só já...
Leocádia é bem
hospitaleira. Puxou o lado do pai. Aí acomodou o pretendente à sombra do
mamoeiro no centro do quintal. Já só cheguei a conhecer o rapaz pela foto de
perfil no Facebook. Nascimento era uma fraca figura física, ar furtivo.
Ndyondyo, que usava máscaras respiratórias por conta de uma rinite alérgica que
lhe invadiu já em idade adulta, tinha raiva a ser interrompida no pico do
processo de lida doméstica...
–
Muito
prazer, mãezinha!
–
Tens
tido demais, até! Imagino... E como se chama o filho?
–
Nascimento
da Cunha…
–
Ah,
quer dizer que o jovem é que está a estragar o país, né?…
–
Como?
–
Comendo
ou não, Angola ficou marreca de tanto levar a cunha na cabeça…
–
Hahahah.
Adoro o sentido de humor da mãe…
–
E
o filho Falecimento trabalha?
–
Nascimento,
mãe! Nascimento!
–
Ah,
desculpa só. É só que Nascimento, Falecimento, tudo passa pelo viver. Onde é
que o pai trabalha?”
–
Na
ENDE e colaboro com a RNT… Sou despachador-chefe. Ligamos (ou não) as linhas de
luz consoante a instrução de corte para restrições de racionalização…
–
Afinal
é o pai que fez queimar a minha arca do negócio de gelado de mukwa?!
–
Não
é bem por aí, mãe sogra…
–
ACABOU!
JOVEM! Em nome do povo angolano, batalha já não é batalha, só que a tal vida é
que não ajuda, SAI AGORA MESMO DA MINHA CASA, PAPÁ. NÃO QUERO DISCUTIR, OK?!
VAI, SÓ, PAPÁ, VAI, YA?…
Voltei do serviço nesse dia
ao anoitecer e já só me cabia recolher os cacos do desastre. A minha filha
andava à beira do suicídio. Suei para implantar esperanças. Era questão de
esperar, o rapaz voltaria. O amor emerge por defeito. Lembro-me como se fosse
ontem. E assim estamos a levar a vida, Leocádia envelheceu mais oito anos
debaixo do saiote da mãe, correndo o risco de acabar amante de qualquer
polígamo por aí além.
***
Ah, as coisas que me
acontecem! Não é à-toa que estamos aqui no meio de ladrões. Dizem que o Digno
Magistrado do Ministério Público hoje não pode vir, que vamos passar o
fim-de-semana nessa merda da esquadra. Sinceramente vi logo que isso do novo
Coronavírus ia sobrar para um gajo, eu que nem o antigo alguma vez vi. Tinha de
irromper justo num segundo semestre deste 2020?!
Aliás, ó parente,
desculpa-me lá! (tive mesmo de lhe chamar um nervo!) Mas, você deixa a pessoa
falar todos podres da família, nem manda calar (dentro do respeito, claro)?! Daquele
outro recluso ao canto, como está a dormir desde que cheguei, não falo. Mas
você, para um simples colega de cela, até já falei demais. Praticamente uma
resma…
“Ah, não é por mal,
camarada. Cadeia é mesmo assim, quando entramos é cheios de energias. Depois já
te passa, o tempo hiberna e nós também”.
E qual é o teu crime, já
agora?
“Me apanharam a fumar…”
Mas assim, tipo fumar mesmo
de fumar, ou mais ou menos aquele outro fumar? Mas também em plena Covid, isso
de tingir mais os pulmões, meu mano, até que...
“Nem é por aí. Só tirei a
máscara num instante para dar a baforada e ali apareceu o tanque de guerra com
a tropa especial do exército por cima de mim. É a máscara só…”
Oh, é delito de
fura-prevenção? Comigo foi quase igual. Meu crime foi encostar e confirmar uma
cara escondida nessas máscaras de cirurgia. Era o gajo que me devia eternamente
(burro eu que não ouvi minha avó na língua da avó dela do sul, “u olevalisa
eye onjaki” – aquele que cede por empréstimo é turbulento). Foi mais ou
menos assim, consoante consta no auto de acusação e ocorrência:
“SÔ AGENTE!!! Responde só
já o outro, mô irmão. Não fica mais ignorante”, pedi eu.
“Tu conheces as minhas
habilitações, ó cidadão?! Chama ignorante ao teu pai, faço-me entender?”
“Mas, ó chefe, até falei
com boas maneiras. É de se ofender mais dos pais?...”
“Você tem noção das suas
palavras?”
“Mas assim então, (nessa
vida é bom perguntar para aprender, né?) onde é que me expressei mal? Só falei
não me ignora mais, faz favor...”
“Não foi isso que você
disse! Falaste ‘não fica mais ignorante’… Quer dizer, bastou ver que é polícia,
é porque não estudou, né?!”
“Oh, afinal ignorante e
aquele que ignora não é a mesma coisa? É desculpar.”
“Aprendam bem o português,
OK?!”
“O português é traiçoeiro.
Está a ver só, meu irmão agente? A pessoa ia só mesmo levar chapadas à-toa, é
no tal funeral do Camões que já não fomos…”
“Pronto está desculpado.
Mas também qual é a emergência afinal?!”
“É mesmo o Estado de
Emergência, chefe!”
“Fez o quê?”
“O chefe está a ver aquele
aí de camisa azul? Aproveito fazer queixa contra …”
“Mas aqui no quintal do
supermercado é para apresentar queixa?!”
“Deve e não paga. Estou num
ponto que o meu horizonte é o diâmetro da panela”.
Agora faz sentido. Foi
assim tudo muito rápido. Não tardou que o civil e o fardado me viessem chatear.
O vígaro, bocudo e baixinho não parava de me condenar.
“Ele ofendeu a Sua
Excelência do Presidente da República…”
“O nosso Comandante em
Chefe que Deus nos deu?”, aí o fardado replicava.
“É isso, chefe… Pode chamar
só já o patrulheiro, isso dá julgamento sumário…”
“Assim estás a sugerir ou a
ordenar?! Mas ofendeu o Presidente? Falou o quê?”
“Por acaso não falou nada…”
“Escreveu o quê no
facebook?”
“Não sei, chefe, não lhe vi
no facebook dele…”
“Mas então ofendeu o
Presidente no que tange a quê? Cantou RAP de subversão?”
“Não, chefe.”
“Filho da mãe! Você fumou
liamba ou o quê?! Não fala coisa com coisa, pá!”
“Me encostou meio metro...
Quer estragar minha quarentena e distanciamento...”
E lá o jumento chamou o
patrulheiro que nos recolheu. A meu ver, só usou da sua máscara ante a
inaptidão de juízo arbitral. Mas como só estamos ainda em Abril, tenho
esperança. Segunda-feira vou ser solto. Pior seria num segundo semestre, meu
irmão.
Benguela, 01 Maio
2020 – Luanda, 13 Janeiro 2025

















