sexta-feira, 26 de julho de 2019

NÃO TEM PERNAS O TEMPO (extracto)


O domingo iniciava no sábado, à hora de nos irmos deitar, um pouquinho a seguir às galinhas, tais eram a ansiedade e o volume de fantasias que embalavam o nosso sono garoto!

Ainda hoje tenho dificuldade em descrever um domingo daqueles, se não for a começar pelo pôr-do-sol, quando o dia, que se afigurava interminável, se ia à vida. Víamos, então, o grande sentido que reside em se dizer que a felicidade não se vive, recorda-se apenas. Tão cedo perdoávamos o homem, ou sei lá a força, que se arrogava de precipitar a manivela do tempo. Uma zanga curta; se calhar, para que não fosse longa a ponte entre um domingo e outro.

Dominávamos o itinerário do dia seguinte como a palma da nossa mão, afinal não varia assim tanto em meios pequenos a rotina – deixai-me abusar deste pleonasmo sociológico. Nada de ficar na berma da estrada, a ver se caía do céu coluna de soldados cubanos para permutar conserva enlatada com porcos, e com isso assistir ao espectáculo que era a corrida desenfreada, de quando em vez, atrás de quadrúpedes que rebentassem as fibras de bananeira que se faziam passar por cordas.

Nada de ir com restos de manteiga à padaria, atrás do pão quente, nem à pesca nem a piqueniques. Tão-pouco nasciam bebés de barro.

Ir à igreja era obrigatório, e como tal paragem insonsa. Ao meio-dia vinha a melhor parte, o passeio pelos bairros, levando-nos às mesmas casas, aos mesmos parentes. E nos esquecíamos da maçada de tomar o banho de rio naquele cacimbo insidioso, capaz de deixar amarga a rama e o bananal sem vida, como se das queimadas fossem alvos.

Calcorreávamos as picadas atrás das nossas motorizadas virtuais, que não passavam de esqueléticas jantes de bicicleta, achadas sabe-se lá quando. Ao osso achado o cão questiona pertença anterior, por acaso?! Era por aí.

Em casa da avó nos aguardava um arroz substituído por rolão de milho, toupeiras assadas com o melhor em alho e hortelã, e ainda mandioca ou batata-doce fervida, conforme a safra sazonal. Às vezes achávamos demais as orações, mas toleráveis, como aliás se suporta o gosto do gindungo. Ela tinha a mania de nos repetir que o governo nos daria carro um dia, se estudássemos. Não faltava vontade de perguntar por que não quereria, ela também, um carro, uma vez que em nenhum momento nos parecia que quisesse matricular-se na alfabetização, conhecida à época por EBOC (Escola Básica Operária e Camponesa). O que era governo, não imaginávamos, creio até que não sentíamos dele falta alguma directamente. A avó plantava mitos, e o mito não morre.

Mas o que eu adorava mesmo era ver a avó cantar hinos cristãos, quase sempre acrescentando-lhes ou retirando sinónimos, tons vocais ou metáforas, o que os tornava ainda mais originais. Não voltavam a ser os mesmos depois que caíssem nos ouvidos dela! Que óptima era! Os hinos, talvez por não existirem gravadores, pareciam renovar-se em cada entoar. É que o único gravador da comuna era um à corda, que mal servia para qualquer estatística que fosse.

Chamou-se Kwayela, do provérbio Umbundu, “kwayela osema, ovipula njala oko vili” (*). Hoje, ó avó materna minha, ouve o que te digo: com tantas confusões, nós, o povo em geral, que não dirigimos nem mudamos directamente as coisas, merecíamos, quando desse vontade, mudar de mundo, mas, oh tragédia, só temos este e aquele outro, o teu, o da inverosimilhança.

Não tem pernas o tempo, seriam longas, ou curtas, demais.

Gociante Patissa (Pág. 115-6. União dos Escritores Angolanos, Luanda, 2013)
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(*) Lá onde a fuba [farinha de milho] abunda, há também famintos.
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