O domingo iniciava
no sábado, à hora de nos irmos deitar, um pouquinho a seguir às galinhas, tais
eram a ansiedade e o volume de fantasias que embalavam o nosso sono garoto!
Ainda hoje tenho
dificuldade em descrever um domingo daqueles, se não for a começar pelo
pôr-do-sol, quando o dia, que se afigurava interminável, se ia à vida. Víamos, então,
o grande sentido que reside em se dizer que a felicidade não se vive,
recorda-se apenas. Tão cedo perdoávamos o homem, ou sei lá a força, que se
arrogava de precipitar a manivela do tempo. Uma zanga curta; se calhar, para
que não fosse longa a ponte entre um domingo e outro.
Dominávamos o
itinerário do dia seguinte como a palma da nossa mão, afinal não varia assim
tanto em meios pequenos a rotina – deixai-me abusar deste pleonasmo
sociológico. Nada de ficar na berma da estrada, a ver se caía do céu coluna de
soldados cubanos para permutar conserva enlatada com porcos, e com isso
assistir ao espectáculo que era a corrida desenfreada, de quando em vez, atrás
de quadrúpedes que rebentassem as fibras de bananeira que se faziam passar por
cordas.
Nada de ir com
restos de manteiga à padaria, atrás do pão quente, nem à pesca nem a
piqueniques. Tão-pouco nasciam bebés de barro.
Ir à igreja era
obrigatório, e como tal paragem insonsa. Ao meio-dia vinha a melhor parte, o
passeio pelos bairros, levando-nos às mesmas casas, aos mesmos parentes. E nos
esquecíamos da maçada de tomar o banho de rio naquele cacimbo insidioso, capaz
de deixar amarga a rama e o bananal sem vida, como se das queimadas fossem
alvos.
Calcorreávamos as
picadas atrás das nossas motorizadas virtuais, que não passavam de esqueléticas
jantes de bicicleta, achadas sabe-se lá quando. Ao osso achado o cão questiona
pertença anterior, por acaso?! Era por aí.
Em casa da avó nos
aguardava um arroz substituído por rolão de milho, toupeiras assadas com o melhor
em alho e hortelã, e ainda mandioca ou batata-doce fervida, conforme a safra
sazonal. Às vezes achávamos demais as orações, mas toleráveis, como aliás se
suporta o gosto do gindungo. Ela tinha a mania de nos repetir que o governo nos
daria carro um dia, se estudássemos. Não faltava vontade de perguntar por que
não quereria, ela também, um carro, uma vez que em nenhum momento nos parecia
que quisesse matricular-se na alfabetização, conhecida à época por EBOC (Escola
Básica Operária e Camponesa). O que era governo, não imaginávamos, creio até
que não sentíamos dele falta alguma directamente. A avó plantava mitos, e o
mito não morre.
Mas o que eu
adorava mesmo era ver a avó cantar hinos cristãos, quase sempre
acrescentando-lhes ou retirando sinónimos, tons vocais ou metáforas, o que os
tornava ainda mais originais. Não voltavam a ser os mesmos depois que caíssem
nos ouvidos dela! Que óptima era! Os hinos, talvez por não existirem
gravadores, pareciam renovar-se em cada entoar. É que o único gravador da comuna
era um à corda, que mal servia para qualquer estatística que fosse.
Chamou-se Kwayela,
do provérbio Umbundu, “kwayela osema, ovipula njala oko vili” (*). Hoje, ó avó
materna minha, ouve o que te digo: com tantas confusões, nós, o povo em geral,
que não dirigimos nem mudamos directamente as coisas, merecíamos, quando desse
vontade, mudar de mundo, mas, oh tragédia, só temos este e aquele outro, o teu,
o da inverosimilhança.
Não
tem pernas o tempo, seriam longas, ou curtas, demais.
Gociante Patissa (Pág.
115-6. União dos Escritores Angolanos, Luanda, 2013)
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(*) Lá onde
a fuba [farinha de milho] abunda, há também famintos.
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