Parte o presente exercício de dois relatos partilhados
recentemente por um casal que revelava semelhanças num gesto das respectivas
mães, atitudes que, vistas além de simples coincidência, fornecem matéria antropológica.
Trataremos a mãe do marido por “Njali-A” e a mãe da esposa por “Njali-B”, sendo
“onjali ou njali” correspondente a pai/mãe, tutor/a.
Njali-A e njali-B têm em comum o papel de “ndona yukulu ou ukãi watete”, estatuto social dado às primeiras esposas, em
contextos de poligamia, onde, independentemente da idade, as demais (“sepakãi”) se assumem “irmãs mais novas”.
O que
as separam são uma década e cerca de 600km de estrada. Njali-A vivia
em Kutenda, município da Chicomba, província da Huila, e o gesto deu-se na década
de 70; por sua vez, njali-B vivia no Monte-Belo, município do Bocoio, província
de Benguela, e sua acção deu-se na década de 80.
Os Ovimbundu, há quem os chame “os Umbundus” por conta
da sua língua, são grupo etnolinguístico de origem Bantu que habita o centro e
sul de Angola, em seis das 18 províncias: Kwanza-Sul, Benguela e Namibe (costa),
Bié, Huambo e Huila (planalto centro e sul). Representam 1/3 da população, num país com 16 milhões de habitantes, e cerca de
oito grupos de matriz Bantu, sem esquecer os Khoisan,
pré Bantu, e os de origem ocidental.
Nem sempre o número de falantes é indicador de etnia, um
fenómeno que podemos atribuir a dois factores: (a) a motricidade das
comunidades de trabalhadores do CFB (Caminho de Ferro de Benguela), do Lobito (Benguela,
litoral centro) ao Luau (Moxico, extremo leste e de predominância Lunda Cokwe);
(b) o êxodo para as cidades e/ou zonas mais seguras durante as três décadas de guerra
civil, onde poderá contar o facto de a UNITA (rebelião armada) ter imposto o
Umbundu como símbolo de afirmação patriótica nas zonas sob seu domínio.
No contexto das comunidades rurais que abordamos, a maioria
das mulheres dedicava-se ao cultivo e lida doméstica, salvo poucas com formação
básica para o professorado ou enfermagem. O mesmo se aplica aos homens, no cultivo
e caça, excepto uns poucos na função pública, com ofício, ou então para-militares.
Njali-A era esposa de motorista hospitalar e Njali-B de funcionário
administrativo. Seus maridos eram de concentrar as várias esposas num mesmo
espaço, chamemos-lhe de quintal, e com isso uma convivência intensa entre as “irmãs”
rivais. Até aos dias de hoje, há quem o pratique nos centros urbanos, o que é culturalmente
normal, mas nem por isso fácil de gerir.
Em sociedades de pendor “machista”, a participação da mulher na tomada de decisões é aparentemente
nula, pois, como se sabe, este ser secundário tem subtilezas para vincar
posição. Falaríamos por exemplo da influência que as mulheres vêm tendo sobre
os mais diversos carrascos. Njali-A adoptou um cão, a quem atribuiu o nome de “Notole”. Njali-B intitulou o seu cão “Cohinla”. A palavra
é ícone para um provérbio, o que seria pleonasmo referir, já que é sobre o adágio
que assentam os nomes dos Bantu.
“Notole,
ndikasi vesaila; nate ciwa, ndikasi lo kimbo lyetu” –
choca-me bem, sou pinto dentro do ovo; trata-me bem, que faço falta à terra de
onde venho. “Cohinla mange calwa” – é
muito o que se esconde no silêncio de mulher madura. Na força do provérbio, as
mulheres apresentam um protesto passivo-agressivo aos maridos e demais
elementos da poligamia, e ao mesmo tempo uma denúncia à comunidade sobre o que
as intriga, ao longo dos 10 anos de vida de um cão, o guarda de casa. Ainda da
comuna do Monte-Belo vem outro exemplo: “Kanjila”
foi a alcunha que certo homem chamou para si. “Kanjila komange kakwete apa katekula, kasumbiwa”. Por mais
insignificante que possa parecer, o passarinho-mãe tem um ninho a sustentar e exercer
autoridade.
Podemos considerar que a atribuição de nomes proverbiais
a animais como forma de protesto é prática antiga entre os Ovimbundu e provavelmente
de outros povos Bantu, dada a semelhança entre Njali-A e Njali-B, que vivem em épocas
e lugares distantes. Não parece, por outro lado, que seja ao acaso também que um
homem adoptou a alcunha para reclamar respeito.
Gociante Patissa, Benguela, Outubro 2011
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