sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Ensaio: Recados implícitos na atribuição de nomes a animais entre os Ovimbundu

Parte o presente exercício de dois relatos partilhados recentemente por um casal que revelava semelhanças num gesto das respectivas mães, atitudes que, vistas além de simples coincidência, fornecem matéria antropológica. Trataremos a mãe do marido por “Njali-A” e a mãe da esposa por “Njali-B”, sendo “onjali ou njali” correspondente a pai/mãe, tutor/a.

Njali-A e njali-B têm em comum o papel de “ndona yukulu ou ukãi watete”, estatuto social dado às primeiras esposas, em contextos de poligamia, onde, independentemente da idade, as demais (“sepakãi”) se assumem “irmãs mais novas”. O que as separam são uma década e cerca de 600km de estrada. Njali-A vivia em Kutenda, município da Chicomba, província da Huila, e o gesto deu-se na década de 70; por sua vez, njali-B vivia no Monte-Belo, município do Bocoio, província de Benguela, e sua acção deu-se na década de 80.

Os Ovimbundu, há quem os chame “os Umbundus” por conta da sua língua, são grupo etnolinguístico de origem Bantu que habita o centro e sul de Angola, em seis das 18 províncias: Kwanza-Sul, Benguela e Namibe (costa), Bié, Huambo e Huila (planalto centro e sul). Representam 1/3 da população, num país com 16 milhões de habitantes, e cerca de oito grupos de matriz Bantu, sem esquecer os Khoisan, pré Bantu, e os de origem ocidental.

Nem sempre o número de falantes é indicador de etnia, um fenómeno que podemos atribuir a dois factores: (a) a motricidade das comunidades de trabalhadores do CFB (Caminho de Ferro de Benguela), do Lobito (Benguela, litoral centro) ao Luau (Moxico, extremo leste e de predominância Lunda Cokwe); (b) o êxodo para as cidades e/ou zonas mais seguras durante as três décadas de guerra civil, onde poderá contar o facto de a UNITA (rebelião armada) ter imposto o Umbundu como símbolo de afirmação patriótica nas zonas sob seu domínio.

No contexto das comunidades rurais que abordamos, a maioria das mulheres dedicava-se ao cultivo e lida doméstica, salvo poucas com formação básica para o professorado ou enfermagem. O mesmo se aplica aos homens, no cultivo e caça, excepto uns poucos na função pública, com ofício, ou então para-militares. Njali-A era esposa de motorista hospitalar e Njali-B de funcionário administrativo. Seus maridos eram de concentrar as várias esposas num mesmo espaço, chamemos-lhe de quintal, e com isso uma convivência intensa entre as “irmãs” rivais. Até aos dias de hoje, há quem o pratique nos centros urbanos, o que é culturalmente normal, mas nem por isso fácil de gerir.

Em sociedades de pendor “machista”, a participação da mulher na tomada de decisões é aparentemente nula, pois, como se sabe, este ser secundário tem subtilezas para vincar posição. Falaríamos por exemplo da influência que as mulheres vêm tendo sobre os mais diversos carrascos. Njali-A adoptou um cão, a quem atribuiu o nome de “Notole”. Njali-B intitulou o seu cão “Cohinla”. A palavra é ícone para um provérbio, o que seria pleonasmo referir, já que é sobre o adágio que assentam os nomes dos Bantu.

“Notole, ndikasi vesaila; nate ciwa, ndikasi lo kimbo lyetu” – choca-me bem, sou pinto dentro do ovo; trata-me bem, que faço falta à terra de onde venho. “Cohinla mange calwa” – é muito o que se esconde no silêncio de mulher madura. Na força do provérbio, as mulheres apresentam um protesto passivo-agressivo aos maridos e demais elementos da poligamia, e ao mesmo tempo uma denúncia à comunidade sobre o que as intriga, ao longo dos 10 anos de vida de um cão, o guarda de casa. Ainda da comuna do Monte-Belo vem outro exemplo: “Kanjila” foi a alcunha que certo homem chamou para si. “Kanjila komange kakwete apa katekula, kasumbiwa”. Por mais insignificante que possa parecer, o passarinho-mãe tem um ninho a sustentar e exercer autoridade.

Podemos considerar que a atribuição de nomes proverbiais a animais como forma de protesto é prática antiga entre os Ovimbundu e provavelmente de outros povos Bantu, dada a semelhança entre Njali-A e Njali-B, que vivem em épocas e lugares distantes. Não parece, por outro lado, que seja ao acaso também que um homem adoptou a alcunha para reclamar respeito.

Gociante Patissa, Benguela, Outubro 2011
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