sábado, 27 de agosto de 2011

Crónica: O volátil pregão de um «quase poeta»

São 21h13 horas, quando dou por mim a abrir a tampa do depósito, após umas quantas hesitações. Nas bombas da Sé Catedral, a única viatura, justo em noite de sexta-feira. Via-se mesmo que era daqueles dias dignos de riscar do calendário, por nada terem de especial.

Vinte litros, pedi, sem me preocupar com quantos tostões haveria de poupar para o matabicho da manhã seguinte, como há semanas não ocorria. Era tão bom que o fim do mês fosse mais de uma vez por mês… era, era!

Estendo dois mil em nota. O atendedor tarda com o troco, clemente, enquanto selecciona quais das cédulas a menos rota. Neste instante, ouve-se berro de um casal (nada sensual, quando até estavam à porta de hospedaria). Ele contorce-se de dores no ombro, onde a rapariga acabava de aplicar uma impiedosa dentada. Ela, em jeito de justificação implícita ante os olhos curiosos, completa: “me larga, merda! Já disse que não gosto dessas brincadeiras”. A lágrima não cai, não devia ser nada de grave.

Ele aproxima-se, deixando-se revelar pelo sorriso fluorescente das bombas. O perfil desmente a noção de casal, sequer conhecia a mordedora. Devia ter uns de vinte e tal anos, médio de estatura, porte físico anónimo, farrusco. Entretanto, causavam-me certa inveja o cabelo desgrenhado e o sentido de liberdade pura, excepto os surtos de demência. “Meu mano, a gente batalha tanto de dia para conseguir um telemóvel desses. Agora quero vender ao meu mano a bom preço”. Não! Não são horas de comprar telefone, digo em tom de censura, presumindo tratar-se de produto roubado… para as drogas.

“Dinheiro também é só papel!”, diz-me, atrevido. Depende de como o ganhas!, devolvo, talvez com orgulho ferido. Por alguns instantes, custa-me reduzir a simples papel o que me chega via salário. O «quase poeta» continua: “Quando morremos, não levas nada, só o coração parado e os teus c…” (refere-se a um par de testículos – os meus –, tratados por aquele nome nada cristão). “É quêêê? Tudo fiicaaa!”, insiste, seria escusado dizer insolente.

Toma conta de mim algo estranho, podia ser raiva, ou vontade apenas de lhe responsabilizar pelas bocas. Chego mesmo a considerar um par de estrondosas galhetas, que seriam, aliás, matematicamente, proporcionais ao citado, oculto onde terminam as pernas e começa o tronco, como diria certo escriba. Ou estaria eu a misturar emoções?

Horas antes, um amigo, jornalista, esteve a azucrinar-me, uma vez mais, por ainda não ter filhos. Foi preciso lembrar-lhe, mais a mim do que a ele que de certeza não sabia, da miséria que marcou minha adolescência. Trabalhar para sustentar os próprios estudos, desde os quinze anos, é maçada que não espero ver repetida por eventuais filhos meus. Portanto, sublinhei, teremos visões diferentes enquanto eu não subscrever a mentalidade atrasada que valoriza a pessoa pelo quanto pro-cria, havendo ou não condições para o sustento.

A vida é para se desfrutar com pressa, parece ser essa a lei do meu amigo jornalista, sublinhada horas depois pelo volátil pregão de um «quase poeta» de rua. É como se agora surgisse uma agência Moody’s, em miniatura, para andar aos rankings com o que fazemos com o nosso salário e, oh tirania, com os nossos próprios testículos.

Gociante Patissa, Benguela 27 Agosto 2011
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