Um dos aspectos humilhantes da colonização reside na subjugação e desprezo, pelo sistema, de parte da cultura local. Angola vive ainda as confusões do aportuguesamento de nomes, muitas vezes diluindo o nexo proverbial africano. Londuimbali, por exemplo, provém de Olondui vi vali (dois riachos), Nharea é Enyaleha (estepe, prado), Bailundo é MBalundo. Mas nem tudo foi infeliz, diga-se. Quando os tugas decidiram “forrar” com o nome de Monte-Belo a terra que os donos chamam de Utue Wombwa (cabeça de cão), acertaram, já que há mais poesia em Monte-belo do que numa cabeça de cão.
Conhecida pela rica cultura de abacaxi, Monte-belo, a comuna que me viu nascer, destaca-se na preservação da tradição oral do povo circunscrito ao município do Bocoio. É portanto nos fecundos matagais do Monte-Belo que nasceu a fábula de hoje.
Num dos inspiradores voos de sua mãe, deu-se a fecundação de Kanende (passarinho). De seu pai nada se sabe, já que entre aves não há compromissos, basta o apetite e o acaso pro-criativo. De uma abençoada chuva rejuvenesceu a senhora Luavava (trepadeira), dando à luz a menina Luavava, que por fatalidade congénita não sai do chão – até surgir mão humana com uma estaca, o que raramente ocorre na mata. Moma (jibóia) nasceu provavelmente de um saudável coito, que me custa imaginar no preconceito que carrego. Não é fácil associar a imagem de um apaixonado coito à espécie feroz, como é o caso de répteis letais. É melhor ficar por aqui com essa intromissão na intimidade familiar dos outros, que até não fica bem, né?!
Luavava tem sangue verde (mesmo você, se fosse trepadeira, teria o mesmo que outros vegetais). Moma nunca esteve de pé em toda a sua vida, como também é natureza de répteis. Kanende vive expondo as axilas, uma deselegância incorrigível das aves que vivem voando para se locomover. Cada espécie sabe escolher suas presas, fugir de seus carrascos. Tudo na boa. A mata é um verdadeiro laboratório de coabitação.
Certo dia, Moma bronzeava-se na preguiça digestiva. Ao seu lado estava uma bem nutrida Luavava, que casualmente se encontrava na posição vertical, encostada no que sobrou de uma árvore neutralizada pela época das queimadas. Kanende apreciava a paisagem, pendurada num dos galhos.
— LUAVAVA! — gritou, assustado, Moma. — Avisa Kanende para fugir, vem aí um caçador!!!
Luavava sorriu. «Que estúpido esse Moma!», pensou, «que tenho eu a ver com o caçador?».
— Anda, Luavava!!! Alerta Kanende para fugir, depressa, que o caçador se aproxima!!! «Ó Moma, a nós o caçador não assusta, não damos carne nem sangue. Isso é convosco», continuou, calada e cínica, Luavava. Kanende sempre no devaneio da alma, sentada no topo do tronco.
«Tuáh! Tuáh! Tuáh!», atirou certeiro o caçador. Kanende perdeu a vida sem tempo para um último assobio. Moribundo, foi cair sobre o corpo de Moma, que mal se conseguia mover. Como chegar perto da jibóia? E outra vez – «tuáh! tuáh! tuáh!» – metralhou. Morte da jibóia. Duas presas. Fartura. Mas como levar a carne para a casa? Foi então que o bicho-homem agarrou na Luavava, tanta quanto pôde, usando-a como corda, e com ela arrastou Kanende e Moma. Se o tempo voltasse, talvez Luavava ouvisse Moma, talvez Kanende escapasse…
Moral: «Caveta ngolo, mbumbuangolo kacosile»= o que afecta o joelho, não poupa a rótula.
Adaptação da fábula contada pela mana Arminda Kanjala Gociante Patissa
D. Gociante Patissa, Benguela, 2 Maio 2010
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Ndapandula a ti e à mana Arminda.
Saudades e até breve :)
Oi, Kanuthya, saudades daqui tb... Até!
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