Quem tem experiência de vida na periferia (e por aí fora), juro mesmo!, entenderia as razões do Ferramenta, que decidiu levar uma vida sem vizinhos. É que é muita confusão, uns querem saber de tudo o que se passa na casa dum gajo. Mas o que chateia mesmo é quando o vizinho decide o fim-de-semana todo curtir música com o volume acima do máximo, como se o barulho do gerador já fosse pouco. Bom, se calhar até não têm culpa, quem fabricou o aparelho é o chinês, e músicas como Kú-duro não têm açúcar nem sal quando o volume está baixo (isso até um surdo saberia!).
Vizinha, como a minha, que aconselha os filhos em tom de comício, faria qualquer um usar protectores auriculares, mas (todos os dias?) seria maçada. Por isso mesmo é que dou razão ao Ferramenta, na ideia de ir viver o mais longe possível, que se lixe lá se no final deste relato ele vai ter um problema maior (epá, isso é lá mais p’ra frente). Aliás, sobre o factor vizinho já se falou muito: ora vizinho é melhor que família, ora vizinho só é bom quando não atravessa o muro.
Quando é que começou a existir vizinhança, ainda está por se saber. Mas a relação entre vizinhos é um daqueles temas de debate eterno, do tipo, a galinha e o ovo quem surgiu primeiro? Isso já alimentou romances, canções, produções de TV e, infelizmente, também tribunais, e por aí fora. É regra estarem em causa o conflito, o boato, o corno, etc. «Eu namoro com qualquer homem que me pedir, porque não fui chamar ninguém», desafiava uma vizinha aos ataques de ciúmes da outra. Não teríamos mais paz vivendo sem vizinhos? Você já pensou nisso algum dia?
Voltemos, que já é tempo!, ao caso específico do compatriota Ferramenta, que certo dia resolveu realizar um sonho antigo: o de livrar-se dos vizinhos. Mas como? Foi na procura desta resposta que se dedicou a trabalhar duro, como burro mesmo digamos, economizando milagrosamente o pouco que conseguiu ganhar durante mais de quinze anos. Assim, a esposa só tinha que ir ao salão para tratar da beleza – evitando os dedos da vizinha, que ganhava mais um mexerico pela trança; os filhos tinham computadores, telemóveis, Internet, e todo o aparato possível para fazerem amigos sem precisarem o entra e sai da vizinhança; reuniu todo o equipamento de limpeza e higiene possível, deixando para sempre de precisar mobilizar os vizinhos para a campanha de limpeza. Tudo para se considerar uma ilha que se bastasse a si própria.
Que não seja possível escolher os pais, avós, irmãos, tios, etc., que gostaríamos de ter, isso é algo com que temos de nos conformar. Cada um nasce e assume os restantes graus de parentesco, como o manda a lei da árvore da genealógica… e não há como escapar. Mas nada mais o irritava do que as refeições atrasadas porque a esposa foi bater papo, os filhos da casa ao lado entrando e saindo, isso, sem esquecer os olhos da rua por cada artigo de valor que o vissem trazer para a casa.
Uma vez reunidas as condições, foi ao deserto viver numa casa projectada no isolamento, como sempre quis – sem vizinhos! A distância era por aí quinze quilómetros do seu antigo bairro. Tudo o que se ouvia à volta da casa era o assobiar dos pássaros, o soar do vento e até o jardim crescer, deleitavam-se observando a variedade de bichos. A vida tinha melhorado (e de que maneira!). Afinal, quem é que não gosta de sossego?! Viviam uma paz quase perfeita.
Quase perfeita, atenção!, a paz até ocorrer um fenómeno que virou a vida deles ao avesso. Assim do nada viram o seu lar invadido por antigos vizinhos, numa onda terrível de violência. Nem mesmo os quinze quilómetros de deserto foram suficientes para amainá-los.
Tudo porque uma águia, que sobrevoava o antigo bairro, resolveu roubar um bebé, que era fino como boneca de natal, enquanto descansava ao pé da árvore. Informados de tão raro fenómeno, os mais robustos moradores da aldeia decidiram seguir a ave, que os benfiquistas por acaso veneram. Um tempo depois, e já cansada, a águia decide largar a presa. Só que, coisas do destino, diria eu se nele acreditasse, o bebé foi pousar exactamente na nova casa do senhor Ferramenta.
Pois então!… (indignaram-se os antigos vizinhos ao chegarem) mudaste de bairro, mais é, para roubares os bebés dos outros, usando águias? Seu feiticeiro do raio!
Pouco tempo teve para se defender, ele que não podia contar com a ajuda de vizinhos, obviamente porque não os tinha. Já foi dito que a comitiva de perseguição à águia era constituída pelos mais robustos homens da aldeia, a mesma que se situava há quinze quilómetros do local da confusão, portanto por muito que quisessem gritar era em vão. Foi uma surra de quebrar ossos. Sobre ele pesava – e ao que parece para sempre pesará – a acusação, melhor dizer condenação, de o isolamento ser só um projecto para o roubo de recém-nascidos. O grande desafio é convencer a sociedade do contrário, já que, quem é que em sã consciência acredita numa vida sem vizinhos?
Moral da estória: existem normas que servem de padrão para evitar medidas extremas no relacionamento entre as pessoas. Até porque cada um de nós é vizinho de alguém.
Adaptação: Gociante Patissa