Velha-Mbali encontrava-se a repousar no cadeirão da varanda desde a sua chegada. Confundiam-se no bocejar os solavancos da viagem e os restos do sono de quem madrugou para apanhar o primeiro autocarro intermunicipal da SGO. As pausas prolongadas e a economia de palavras eram parte da recuperação do efeito dos vómitos. A anciã teve o incómodo já previsível de usar saco plástico para lançar, foram três vezes nesta viagem de 70Km para ser mais preciso, uma fatalidade que decerto não será digerida nesta encarnação.
Qual sino de boas-vindas, o efeito acústico resultante do atrito entre a loiça e os talheres, enquanto punham a mesa, lisonjeava os ouvidos da hóspede. Chegava também com agrado a fumaça do peixe na grelha, que era a segunda paixão que Velha-Mbali guardava da cidade depois da família.
Velha-Mbali herdara da mãe uma beleza que compensava a estatura baixa do lado paterno. O rosto era a única vitrina para se lhe ver a pele semi-flácida, obra da idade. Usava panos compridos de arrastar o chão, como manda a tradição. Os cabelos maioritariamente brancos salientavam a ligação entre o lenço e o quimone, ambos de tecido azul-escuro de pintas brancas. A sorte de nascer imune à cárie era responsável pela capacidade de competir com os netos em matérias de mastigar, fosse o que fosse. Como é claro, empatava também na hora de palitar.
E enquanto a deixavam descansar sob a sombra da trepadeira, aguardava pelo almoço, calada, mas sempre atenta ao mínimo movimento no quintal. Era esta última a característica que os netos mais gostavam nela: ser fértil em análises dramáticas das makas da sua gente.
A fadiga da viagem não duraria muito, cedo seria suplantada pela emoção de rever os netos, agora bem crescidinhos. Bálsamo mais milagroso que isso seria impossível. Sentia-se inclusive rejuvenescida ao ver a neta caçula, sua chará por sinal, com mais de dez anos. E isso era suficiente para se dar conta da longa ausência na vida dos seus entes, pelo menos fisicamente. Mas para além do desconforto com as viagens por estrada, infelizmente a única via, Velha-Mbali considerava improcedente o convite de viver a beira-mar. E exigia que se respeitasse a sua posição, vontade que resultara com os adultos, mas não com os netos, que eternizavam o debate.
– Ó avó – rompeu o silêncio Waldemar, o primogénito –, a avó veio para ficar já, não?
– Não, kanekulu… Avó vem comer só natal!
Todas as vezes que veio à cidade, Velha-Mbali se deparou com deselegantes surpresas, mas a desta vez batia seguramente todos os recordes. A anciã chegou mesmo a tossir de choque ao cruzar com miúdo de doze anos apenas, não mais que isso, girando a cidade para cima e para baixo com cuecas e sutiãs de mulher adulta no ombro a gritar: «arreou, arreou no negócio, é a última zunga do ano!!!».
E a conversa ainda continuou depois do almoço. Para convencer Velha-Mbali a optar por uma vida mais relaxada, os netos esgotaram todos os argumentos de vantagem da cidade sobre o campo, chegando inclusive a manipular a chará da avó com chantagem emocional. Ao fim de várias horas de debate carregado de mimos no colo e paternalismos de vária ordem, sentenciou Velha-Mbali:
– “Omwenyo Okulima, olohombo ovyo vilia opapelo” (Viver é cultivar. Comer papéis – ou seja, dinheiro – é coisa de cabritos).
Convencidos de que a sua forma de ver a vida era a mais acertada, os netos matavam-se de rir aos exageros da avó que, por sua vez, também se divertia rindo, com agradável malícia, da ingenuidade deles. Mal cabia na cabeça da anciã que alguém maior de doze anos viva dependente dos pais, quando no campo seria capaz de gerir a sua própria lavrinha.
E no dia da partida houve mais alegria que tristeza. Com a presença da avó, o natal daquele ano foi diferente. Quase ninguém sentiu as ausências dos chefes do lar, que andavam de prevenção, o pai na polícia e a mãe no controlo aéreo da aviação civil.
Gociante Patissa, Benguela, 5 de Janeiro de 2009
Qual sino de boas-vindas, o efeito acústico resultante do atrito entre a loiça e os talheres, enquanto punham a mesa, lisonjeava os ouvidos da hóspede. Chegava também com agrado a fumaça do peixe na grelha, que era a segunda paixão que Velha-Mbali guardava da cidade depois da família.
Velha-Mbali herdara da mãe uma beleza que compensava a estatura baixa do lado paterno. O rosto era a única vitrina para se lhe ver a pele semi-flácida, obra da idade. Usava panos compridos de arrastar o chão, como manda a tradição. Os cabelos maioritariamente brancos salientavam a ligação entre o lenço e o quimone, ambos de tecido azul-escuro de pintas brancas. A sorte de nascer imune à cárie era responsável pela capacidade de competir com os netos em matérias de mastigar, fosse o que fosse. Como é claro, empatava também na hora de palitar.
E enquanto a deixavam descansar sob a sombra da trepadeira, aguardava pelo almoço, calada, mas sempre atenta ao mínimo movimento no quintal. Era esta última a característica que os netos mais gostavam nela: ser fértil em análises dramáticas das makas da sua gente.
A fadiga da viagem não duraria muito, cedo seria suplantada pela emoção de rever os netos, agora bem crescidinhos. Bálsamo mais milagroso que isso seria impossível. Sentia-se inclusive rejuvenescida ao ver a neta caçula, sua chará por sinal, com mais de dez anos. E isso era suficiente para se dar conta da longa ausência na vida dos seus entes, pelo menos fisicamente. Mas para além do desconforto com as viagens por estrada, infelizmente a única via, Velha-Mbali considerava improcedente o convite de viver a beira-mar. E exigia que se respeitasse a sua posição, vontade que resultara com os adultos, mas não com os netos, que eternizavam o debate.
– Ó avó – rompeu o silêncio Waldemar, o primogénito –, a avó veio para ficar já, não?
– Não, kanekulu… Avó vem comer só natal!
Todas as vezes que veio à cidade, Velha-Mbali se deparou com deselegantes surpresas, mas a desta vez batia seguramente todos os recordes. A anciã chegou mesmo a tossir de choque ao cruzar com miúdo de doze anos apenas, não mais que isso, girando a cidade para cima e para baixo com cuecas e sutiãs de mulher adulta no ombro a gritar: «arreou, arreou no negócio, é a última zunga do ano!!!».
E a conversa ainda continuou depois do almoço. Para convencer Velha-Mbali a optar por uma vida mais relaxada, os netos esgotaram todos os argumentos de vantagem da cidade sobre o campo, chegando inclusive a manipular a chará da avó com chantagem emocional. Ao fim de várias horas de debate carregado de mimos no colo e paternalismos de vária ordem, sentenciou Velha-Mbali:
– “Omwenyo Okulima, olohombo ovyo vilia opapelo” (Viver é cultivar. Comer papéis – ou seja, dinheiro – é coisa de cabritos).
Convencidos de que a sua forma de ver a vida era a mais acertada, os netos matavam-se de rir aos exageros da avó que, por sua vez, também se divertia rindo, com agradável malícia, da ingenuidade deles. Mal cabia na cabeça da anciã que alguém maior de doze anos viva dependente dos pais, quando no campo seria capaz de gerir a sua própria lavrinha.
E no dia da partida houve mais alegria que tristeza. Com a presença da avó, o natal daquele ano foi diferente. Quase ninguém sentiu as ausências dos chefes do lar, que andavam de prevenção, o pai na polícia e a mãe no controlo aéreo da aviação civil.
Gociante Patissa, Benguela, 5 de Janeiro de 2009
P.S.: este é o primeiro conto original que me permiti expor na Internet.
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Fenomenal, tem que fazê-lo mais vezes :)
Estamos Juntos!
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