Voltei a vê-lo hoje na boleia (paragem de transportes públicos) e, quase quinze anos depois, era o mesmo invejável homem de personalidade rara, que me remeteu a uma urgente e profunda viagem mental aos seus tempos de glória. A forma como com a linguagem do corpo se punha em vantagem, numa situação até embaraçosa, fez-me lembrar o “optimismo” de meter medo, naquele filme americano sobre Edie, o pior realizador de sempre.
Quem me conhece sabe que sou sempre o mesmo, ora optimista e na maioria das vezes desesperado. Por acaso até, os últimos dias não me têm ajudado muito quando é para sustentar a auto estima, e você concordará comigo se lhe contar que é por carecer de dois elementos polémicos: mulher (mais do que sexo) e dinheiro (materialização de projectos, mais do que compra e venda, ou conta bancária encerrada); de resto, uma daquelas fases em que a pessoa só sai de casa por haver compromissos sociais inadiáveis, chegando mesmo a se esquecer de usar a calça mais limpa e coisas do género.
Conheci-o muito depois do nome na época das Lojas Francas, da Açucareira, da URSS, das motas MZ, óculos com jogo de luzes e vídeos Nokia. Só de pensar nele sinto-o tão perto, tão real, no seu habitual short (calções) jeans azul que usa propositadamente para exibir a marca e o feitio do calçado. Depois, já não é difícil ver o seu andar de extrema banga (vaidade), tanta assim que o calcanhar não toca o chão, para não falar do ritmo que se tornou regra – falo do balançar do seu “rabinho”, como se de uma moça à caça de homens se tratasse.
Era o rei do “Domingo angolano”, as tardes de disbunda (farra) no centro turístico dos Bambus, onde os animais enjaulados assistiam a escassos passos, suportando o barulho do gira-discos e leitor de cassetes e/ou uns tantos chatos que depositariam alguns insultos, do tipo: esse macaco é feio, esse jacaré é aquilo, olha só… e tal. Como me lembro de nunca termos dinheiro para um simples rebuçado, nem já para o acesso ao quintal, tendo de pular o cerco ou passar debaixo do arame, ajudados pela pequenez, passando mais tempo a fugir do guarda do que a dançar ao lado dos kotas (adultos)?! Chamou para si a alcunha “Dá que dói”, uma corruptela intencionalmente sensual do nome de uma antiga figura militar angolana na luta pela independência. Às vezes me pergunto se ele conhece a etimologia do nome. Famoso como ele e digno de dançar ao mesmo nível, só mesmo o “Gato”, feito de si célebre por dançar Vayola e possuir, dizia-se, cuecas com jogo de luzes!!!
E hoje, estávamos no mesmo Hiace na boleia da unidade operativa na Caponte, Lobito, ali onde quase ninguém mais fala, senão os cobradores de Hiaces, cujo pregão se diferencia pelo destino entre a vila da Catumbela e a cidade de Benguela. Sempre a seu jeito, ele senta-se na baúca (a parte posterior do assento do motorista, tampa do motor) … a razão é que só tinha quarenta kwanzas, contra os cinquenta vigentes há bué (muito) d’anos. A barba rentinha já não consegue esconder a idade, o que confirma um olhar rápido à parte exposta entre os seus calções jeans e os tennis converse da mayuya (imitação do original e produto de baixa qualidade). Levava um disco pirateado de kizomba lusófono. Ainda assim, estava aí, firme, sorridente, bangão, aparentemente feliz. Como será que consegue, com tanto desemprego, limitadas oportunidades de formação, corrupção em tudo quanto é canto… com tanta frustração social?
“Dá que dói” é um daqueles compatriotas em cuja aparência buscamos alguma força para o equilíbrio, quando todo o optimismo e a autoestima parecem sucumbir; um daqueles que hoje lutam contra a ordem natural da vida, o legado de que tudo tem seu tempo, regra essa que ajuda a saber ser e estar de acordo com o contexto. Mas será que tem noção disso? Será que o deixaram ascender à categoria tácita de cidadão observador atento, quando tudo indica que ele não sabe, no mínimo, assinar o próprio nome? É apenas uma questão de diferença de personalidade, ou “alienação” de mais um irmão angolano?
Gociante Patissa, quinta-feira, 24 de Agosto de 2006, 13:06
Quem me conhece sabe que sou sempre o mesmo, ora optimista e na maioria das vezes desesperado. Por acaso até, os últimos dias não me têm ajudado muito quando é para sustentar a auto estima, e você concordará comigo se lhe contar que é por carecer de dois elementos polémicos: mulher (mais do que sexo) e dinheiro (materialização de projectos, mais do que compra e venda, ou conta bancária encerrada); de resto, uma daquelas fases em que a pessoa só sai de casa por haver compromissos sociais inadiáveis, chegando mesmo a se esquecer de usar a calça mais limpa e coisas do género.
Conheci-o muito depois do nome na época das Lojas Francas, da Açucareira, da URSS, das motas MZ, óculos com jogo de luzes e vídeos Nokia. Só de pensar nele sinto-o tão perto, tão real, no seu habitual short (calções) jeans azul que usa propositadamente para exibir a marca e o feitio do calçado. Depois, já não é difícil ver o seu andar de extrema banga (vaidade), tanta assim que o calcanhar não toca o chão, para não falar do ritmo que se tornou regra – falo do balançar do seu “rabinho”, como se de uma moça à caça de homens se tratasse.
Era o rei do “Domingo angolano”, as tardes de disbunda (farra) no centro turístico dos Bambus, onde os animais enjaulados assistiam a escassos passos, suportando o barulho do gira-discos e leitor de cassetes e/ou uns tantos chatos que depositariam alguns insultos, do tipo: esse macaco é feio, esse jacaré é aquilo, olha só… e tal. Como me lembro de nunca termos dinheiro para um simples rebuçado, nem já para o acesso ao quintal, tendo de pular o cerco ou passar debaixo do arame, ajudados pela pequenez, passando mais tempo a fugir do guarda do que a dançar ao lado dos kotas (adultos)?! Chamou para si a alcunha “Dá que dói”, uma corruptela intencionalmente sensual do nome de uma antiga figura militar angolana na luta pela independência. Às vezes me pergunto se ele conhece a etimologia do nome. Famoso como ele e digno de dançar ao mesmo nível, só mesmo o “Gato”, feito de si célebre por dançar Vayola e possuir, dizia-se, cuecas com jogo de luzes!!!
E hoje, estávamos no mesmo Hiace na boleia da unidade operativa na Caponte, Lobito, ali onde quase ninguém mais fala, senão os cobradores de Hiaces, cujo pregão se diferencia pelo destino entre a vila da Catumbela e a cidade de Benguela. Sempre a seu jeito, ele senta-se na baúca (a parte posterior do assento do motorista, tampa do motor) … a razão é que só tinha quarenta kwanzas, contra os cinquenta vigentes há bué (muito) d’anos. A barba rentinha já não consegue esconder a idade, o que confirma um olhar rápido à parte exposta entre os seus calções jeans e os tennis converse da mayuya (imitação do original e produto de baixa qualidade). Levava um disco pirateado de kizomba lusófono. Ainda assim, estava aí, firme, sorridente, bangão, aparentemente feliz. Como será que consegue, com tanto desemprego, limitadas oportunidades de formação, corrupção em tudo quanto é canto… com tanta frustração social?
“Dá que dói” é um daqueles compatriotas em cuja aparência buscamos alguma força para o equilíbrio, quando todo o optimismo e a autoestima parecem sucumbir; um daqueles que hoje lutam contra a ordem natural da vida, o legado de que tudo tem seu tempo, regra essa que ajuda a saber ser e estar de acordo com o contexto. Mas será que tem noção disso? Será que o deixaram ascender à categoria tácita de cidadão observador atento, quando tudo indica que ele não sabe, no mínimo, assinar o próprio nome? É apenas uma questão de diferença de personalidade, ou “alienação” de mais um irmão angolano?
Gociante Patissa, quinta-feira, 24 de Agosto de 2006, 13:06
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