sexta-feira, 21 de maio de 2010

"A morte da albina", conto nº 6 de 7, in "A Última Ouvinte", livro de inéditos a ser lançado brevemente

A chegada do médico ao município do Kaliapu representava uma enorme satisfação para todos, menos para o próprio, que só estava ali de corpo. O coração do pobre homem, este, rejeitava a nova realidade, refugiando-se no antagónico ambiente da universidade. Tanta era a dificuldade em se adaptar à vida longe do mar.

Corria o último dos três meses experimentais, que pareciam anos. Dr. Zé Luhaku sentia-se «atirado» num município que não se encontra em nenhuma versão do mapa nacional. No Kaliapu só havia dois dias diferentes, o Natal e o Ano Novo. Os restantes eram todos iguais, sem açúcar e sem sal. Dr. Luhaku via-se «degredado» do seu mundo, sem as notícias, a eletricidade, a água canalizada, o cinema, as farras do fim de semana. O português, a única língua que dominava com perfeição, também era de pouca utilidade.

Só as colunas conseguiam quebrar a monotonia do local, ao transformar em mercado de permuta a única estrada que divide a comuna sede em dois pólos, Kaliapu-de-cima e Kaliapu-de-baixo. Mas isso era coisa rara, tanto mais que a única vez que presenciou tal evento fora por ocasião da sua chegada. Portanto, já lá iam três meses e pouco se sabia de uma eventual coluna em agenda.

Ao seu desconforto juntava-se o pressentimento de que algo de grave estava por acontecer, dada a impertinência do Investigador-Comandante. O IC, como também adorava ser tratado o maioral da polícia, manifestava publicamente não ir com a cara do médico recém-chegado, apesar de não haver motivo aparente. E isso era de intimidar qualquer um.

O IC era uma pessoa que vivia perturbada por cultivar exagerada noção do poder em suas mãos. Os munícipes fartavam-se de o ridicularizar de vários modos. Na irreverência típica da idade, os jovens costumavam decifrar a sigla IC como «Incompetente-Cabrão», e não «Investigador-Comandante» como devia ser. Mas graças a Deus nunca conseguiu, “Sua excelência” o IC, apanhar ninguém em flagrante delito. Exagerado do jeito que era, não se duvida de que daria até em cadeia perpétua.
* * *
Para enganar o tempo, Dr. Luhaku calçava os olondindi e saía então a caminhar. Andar por aí, sem prazo, nem destino. Só andar, como sempre gostou de fazer, para se encontrar consigo mesmo, esquecendo-se por alguns instantes de confirmar se os pés pisavam de fato o chão.

Desde que o experimentou, nunca mais parou. Nesse dia, seguiu o caminho do rio Kuayela, que ganhou das suas águas sempre límpidas o nome. Diz-se que é lá que os anjos bons vão tomar o seu banho.

O capim, agradecido às chuvas, ainda mantinha um aspecto que se confundia com o daquelas plantas de plástico que enfeitam as mesas dos grandes gabinetes e salas de conferência, de tão viva que era a clorofila.

O espírito do Dr. Luhaku vagueava e revivia aleatoriamente conversas que foi tendo desde os tempos de menino, sobretudo as que não faziam sentido na época. Lembrou-se, por exemplo, de certa vez que um maluco, que enlouqueceu de tanto decorar filosofia, criticou a sua opção pela medicina. Por que ser médico, quando sem pedreiro não haveria casa? Coveiro não é boa coisa, se todos morrem e precisam de ser enterrados, ricos ou pobres? Por que ser médico, se sem eletricidade as pessoas ficam apagadas? Não é melhor ser carpinteiro, quando toda gente precisa de conforto? Ser logo médico, quando sem o alfaiate não haveria tanto luxo em esconder as esquinas do corpo? Ser logo médico, quando isso, isso e aquilo…? A longa lista do maluco teve de ser interrompida pela beleza das goiabas que as meninas vendiam bem no caminho. Tão amareladas, tão perfumadas! Agachou-se, verificou a sua condição e dirigiu-se à vendedora:
— Quanto é a goiaba, amiga?
— Tem de dez, tem de cinco, tio. — respondeu com simpatia e timidez.
— Toma! — estendeu uma nota de dez kwanzas. — Aqui está o teu dinheiro.
— De tudo?
— Não. Só quero de cinco.
— Non tem troco. Passa mais amanhã…
— Pode ficar para ti o troco.
— Obrigada, mano.

Continuou a andar na margem do rio Kuayela, como se com ele caminhasse de mãos dadas. A correnteza, suave e transparente, tinha o magnetismo do televisor. O jovem médico fixou o olhar para apreciar a vida do rio. Os peixes, atraídos pela sombra do caminheiro, caprichavam nas fintas e piruetas, como se quisessem dizer “volte sempre!”. Lisonjeado pelo gesto, ia atirando migalhas de goiaba. Os peixes agradeciam disputando a doação.

Rebolava em carnavalesco remoinho a água sob a «velha Kuayela», como era alcunhada a ponte de betão. Fosse ela ser humano, estaria já em idade de reforma.

Bem ao lado, estavam extensas pedras, de um cinzento-escuro, geralmente usadas para lavar roupa ou pisar fuba. Usavam-se raízes espumosas para contornar a carência do sabão, que só vinha com as colunas.

Era de tocar na alma o cantarolar das mulheres enquanto transformavam bagos de milho em fuba limpa. E cantavam as trabalhadeiras donas de casa, sempre bem entrosadas. Mas apesar de agradáveis, as canções nem sempre eram pacíficas. Veiculavam também muita fofoca e escândalos.

O Dr. Zé Luhaku fascinava-se pela magia do rio que, sem sair do lugar, carregava consigo durante séculos os segredos de várias gerações no movimento místico das águas. Se o rio tivesse a maldade de muitas pessoas deste mundo, ainda seria rico só de fazer chantagem. Sabia demais.

O médico sacou da mochila a sua máquina fotográfica de fabrico russo. Tirou uma ou outra foto, mas parou imediatamente. Talvez tivesse percebido que não há melhor fotografia do que aquela que a mente captar. E quando se foi deitar, as memórias do rio bem que foram uma maravilhosa companheira.

Na manhã seguinte, o município acordou profundamente abalado pelo assassinato da filha do kota Mário. Foi encontrada morta no quarto dela — quarto é só uma forma de dizer, ela dormia na cozinha de teto de capim, um anexo da casa grande.

Bloqueado ainda pelo choque, o pai não conseguia largar a catana, o que amedrontava muita gente. Mas era só um medo à toa. Ele nem sequer se lembrava de ter na mão alguma coisa. Os ponteiros do relógio giravam ao contrário desde o exato momento em que encontrou a filha estendida, no hábito que tinha de tirar água do tanque de fibrocimento da cozinha, lavar a cara e madrugar em direção à lavra.

A notícia rapidamente espalhou-se de boca em boca. Ninguém, naquele dia, saiu para caçar ou cultivar. Um grupo de munícipes foi à esquadra da polícia pedir ao Investigador-Comandante o favor de prender o assassino.

Após a peritagem policial ao corpo, feita com o devido exagero burocrático à porta fechada, as mais velhas da família deram o último banho à vítima, assentando a seguir o corpo numa esteira de ondongo. Só a morta sabia a resposta que a polícia e os munícipes procuravam: o assassino, o motivo e as circunstâncias. O rosto cor-de-rosa perdera a luz da vida, restando apenas uma tonalidade mais sombria do que a morte em si.

Mas havia um grupo, não muito pequeno embora sem a coragem de se assumir, que andava feliz da vida com o acontecimento. Esse naipe de apócrifos gostaria de achar o assassino, mas era para dar os parabéns. Por onde passasse, espalhava as suas teses. E foi através de um deles que Dr. Zé Luhaku, desatualizado na sua mania de taciturno, tomou conhecimento do problema:
— Doutor, já ouviu?
— Eu, não! Ouvir o quê?
— Mataram mais uma bruxa!!!
— Bruxa? Como assim?
— Está ver a filha do kota Mário, a menina de cor?
— Referes-te à albina?
— Sim. É ela, a capânica.
— Ser albina é ser bruxa?
— Não! Ela foi bruxar uma pessoa quente, — quente é feiticeiro forte, Doutor — ali foi apanhada, espancada até morrer. Também ela já não tinha corpo de se bater…
— Tu tens noção da gravidade do que dizes?
— Só assim se explica…
— Ai, então você ainda não tem certeza?
— Doutor, ouça, Doutor, estás só a duvidar porque és novo aqui no município. Então como se explica uma mulher ser encontrada morta no quarto dela, com marcas de espancamento, quando fez serão muito bem e foi dormir e ninguém ouviu gritos?
— Obrigado. Agora podes ir, que por hoje estás dispensado. — foi incapaz de conter a indignação o médico. — E vê se dá algum apoio à família, seu condenador de quem não se pode defender!
— Um dia o Doutor vai me dar razão. Aqui no município há muita bruxa. Morre boi, morre galinha, morre tudo o que é criação. Pessoa já nem se fala. É por isso que a vida no Kaliapu não melhora…
— Vê se aproveita a folga e me dá licença…!

A polícia parecia muito comprometida em satisfazer o favor que lhe fora solicitado. Prender, prender, é fácil, mas quando o criminoso (ou criminosa, podia ser mulher, mesmo que ninguém acreditasse nessa hipótese) não está identificado, é sempre complexo.

Depressa, as notificações foram espalhadas e quase ninguém foi poupado. No posto avançado, o controlo foi reforçado. Um letreiro colocado no meio da estrada dizia:

«Por ordem competente do Investigador-Comandante, a nenhum meio rolante incumbe entrar no município até segundas ordens, sob pena de sofrer medidas implacáveis. Cumpra-se! O nosso trabalho é trabalhar».

Pela gravidade do caso e pela crueldade aplicada, sendo também incomuns barafundas envolvendo albinos — bruxos ou não —, decidiu o IC assumir o processo. Dizia estar tão envolvido, que não restava tempo para dormir ou tomar banho. A verdade, porém, era outra. O maioral evitava enfrentar, na buala, a impaciência dos kaliapuenses. Era como se lhe dissessem, «mostra lá que és homem, IC (Incompetente Cabrão). Apresenta o criminoso, esclarece a situação».

O IC roía as unhas, fumava desesperadamente. Não que fosse para descobrir o assassino, mas para conceber o castigo mais drástico a aplicar. Acendia um cigarro atrás do outro, num golpe tão impessoal que, quase sempre, o cigarro se esfarelava entre os dedos à porta da boca. As bochechas criavam esquisitos papos, de tanta falta de classe. As narinas cuspiam o fumo ao céu com a intensidade de uma locomotiva, kamakovi bem dizer. Trazia o sol sempre a luzir na ponta do nariz, atraído pelo suor oleoso da sua pele de bumbo genuíno, matulão de olhos encarnados e bigode do estilo de chifres de pacaça.

E antes do meio-dia, já muitos suspeitos tinham sido capturados sumariamente. Um atrás do outro, como se de guerra de kwata-kwata se tratasse. Kota Mário foi o primeiro capturado e também o número um a interrogar, sem fazer ideia do que o esperava…
— Entra, compatriota Mário, não há tempo a perder! — convidou o IC.
— Sim, brigado.
— Então, como vai esta disposição depois de tudo?
— Sempre, Chefe IC.
— Mário, diz-me como amigo e eu guardo sigilo. Quem matou a tua filha de cor, ham?
— Non sabe, Chefe IC, também quer saber.
— Quê q’aconteceu até você encontrar o cadáver da falecida?
— Bem… de manhã saí do quarto e já encontrou já assim o morta… o cliança…
— Alto lá! Calma aí! Você usa bacio à noite?
— Sim, Chefe IC, tem bacio.
— Mas então, saiu duas vezes por que fora d’hora?
— Fui fazer maior e menor…
— Foste cagar? Mas a tua mulher, a velha Ndumbila, disse que não tens o hábito de sair de noite… Como é que se explica tua saída fora da agenda?!
— Tinha cikolotola…
— Tinhas cólicas, pá! Qual «cikolotola» esse?
— Er…
— Cidadão Mário, você não gostaria de matar a tua filha? Mataria ou não?
— Não, Chefe, eu não matía…
— Os pais não costumam entrar no quarto das filhas, não é verdade?
— É verdade, sim, Chefe IC.
— Então como é que não foi a mãe buscar água na cozinha, e foste logo tu, como pai?
— Pricissa que tirá áqua condiplessa. Eu non io matar o cliança. — quanto mais nervoso, kota Mário pior acertava no português. – Eu non matía…
— Senhor, Mário, Mário… quando a tua filha nasceu e você subo que, nas complicações de parto, viraram o útero da tua mulher, portanto ela já não pode parir, não foi você quem decidiu atirar o bebé no rio por ser de cor?
— Mas non matei o cliança.
— Eu não disse isso, velho Mário, vamos com calma! Mas anteontem, durante o casamento da filha do mais velho Kacenye, você chorou porque a tua filha já tem vinte anos, está a ficar ultrapassada e nenhum homem se interessa por ela. É verdade ou não?
— É verdade, Chefe IC, tudo pai sente…
— Pensa comigo, velho Mário, por favor! Ponto um. Um pai tem uma filha de cor, raça que nunca quis ter na família. Ponto dois. Fica esse pai a saber que a esposa não poderá nunca mais alcançar. Ponto três. Decide atirar a criança ao rio, mas, para o seu azar, dá encontro com os primos que o impedem. Ponto quatro. A meio da noite o senhor sai duas vezes, mesmo com bacio nas cabeceiras. Ponto cinco. É o mesmo pai o primeiro a descobrir o corpo da filha, quando, na nossa tradição, é burocracia da mulher acordar a filha para varrer. Não te parecem cinco passos certeiros para explicar o crime?
— Chefe IC, eu non matei o cliança. — e rapidamente sentiu na boca o suave gosto salgado da lágrima, que escorregou enquanto falava. — Non matei eu próprio…
— OFICIAL-D-I-A!
— Pronto, IC. — veio a correr o subordinado. — Às suas ordens!
— Recolhe o velho Mário p’ra cela até segundas ordens. Nós aqui só temos um lema: «O nosso trabalho é trabalhar»!

O IC pensava em tudo, menos na hipótese do fracasso. E não cabia em si de tanta imaginação criativa. Era só chamar, aliás mandar e determinar, ou não se chamava IC. Até sorria no vazio do seu gabinete, excitado pela megalomania. Assistia ao filme da entrada do velho Mário por aquela porta e dizer: «sim, IC, eu matei o cliança». Acreditava, na base da sua grande experiência, que até onde as coisas foram, a confissão aconteceria na segunda parte do interrogatório. «Esse crime é doméstico, só pode ser», encorajava-se. Tinha quase a certeza. «Provavelmente o velho andou a meter-se com a filha, já que nenhum homem ia querer. Ou quis pegar à força durante as saídas noturnas e, para a malograda não falar de mais, calou-a para sempre. Claro! É isso! A queima da prova!», convencia-se poisando os pés sobre a mesa, ignorando que executar na teoria não é o mesmo que na prática.

Duas horas depois, o IC voltou a chamar kota Mário:
— Me disseram que, desde que nasceu esta tua filha de cor, você tem língua amarga.
— Bem, chefe…
— Bem, chefe, o quê? Eu sei tudo deste município.
— Desculpa, Chefe, mas você não pode trabalhar com boatos.
— Não te admito, ó Mário, falar assim com um emblema policial, está bem? Estás na sala do único Investigador-Comandante do município. Estudaste o quê para me dirigires esta literatura de palavras? — o IC fazia questão de virar o pescoço como se quisesse confirmar a presença dos passadores nos ombros em gesto de impor autoridade, como era de hábito. Fazia-o com deselegante frequência, de tal forma que se expunha ao ridículo de parecer um pato a beber água ou um cão incomodado pelas carraças. Ainda exaltado continuou:
— Isso alguma vez foi postura, ó Mário, caramba?!
— É desculpar, IC.
— Cala a boca! Desculpa não cura ferida, ouviu bem? Isso de geometria panfletária, aqui não! Tenho vários crimes por esclarecer, e tu me fazes perder tempo? Tu achas que tens competência para me catapultar os nervos, não?! Civil de merda! Desapareçam-me já daqui com esse velho refratário!

E lá estava outra vez o kota Mário a ser empurrado para a cela. Era evidente que o IC nada conseguiria tão cedo com o pai da vítima, mas também seria precipitado mandá-lo em paz. E, nesse ata e não desata, kota Mário viu-se privado inclusive de assistir ao enterro da filha.

Dois dias depois, o processo não tinha avanço nenhum. Tudo estava quase na mesma, tão monótono como o movimento das águas do lago. A única diferença era que a esquadra já não tinha espaço para tantos suspeitos. A lista só aumentava. O IC trancou-se no seu gabinete, fechou as janelas e tudo para mais uma meditação tático-estratégica, no fundo, um truque por ele inventado para poder chorar quando as coisas corressem mal. Mas foi mal sucedido desta vez. Teve de enxugar as lágrimas ao ouvir o toque na porta:
— Mas quem é?
— Sou eu, Chefe! Dami liceça, IC, sou eu…
— Mas «eu» quem? — interrompeu, impaciente, o estratega.
— Sou eu, agente Chanas-do-Leste, IC.
— Ó Chanas-do-Leste, não sabes que quando fecho a porta e a janela é porque estou em meditação tático-estratégica?
— Sei, sim, meu comandante. Mas estou em missão.
— Entr… — antes mesmo de concluir a última sílaba, ouviu o ranger da porta. Ninguém conseguia dizer se era por distração ou se funcionava como sinal de alerta, mas a porta do gabinete do IC, mesmo quando empurrada com o máximo cuidado, fazia sempre aquele barulho irritante de dobradiças sem manutenção.

Ainda para reprovar a ousadia de ser interrompido pelo agente Chanas-do-Leste, o IC banalizou a iniciativa:
— Mas qual é a maka com esse civil?
— Também é suspeito, IC.
— Mas suspeito de quê mais agora, ó Chanas-do-Leste? Eu não tenho tempo perder. O meu trabalho é trabalhar, faço-me entender bem?
— Ele pode ter uma ligação com o autor do homicídio…
—– Como assim?
— Eu sou inocente, Chefe. — interrompeu o acusado. — Eu juro…!
— Cala a boca! — o IC fez valer a sua voz de mando. — Eu não perco tempo com civis quando tenho incumbências caóticas, tá ouvir bem?
— Chefe, é assim!, eu entrei na cozinha, né?, onde a vítima dormia. Nos pés do cadáver vi as marcas do chinelo que calçou pela última vez. É esse. — puxou a matéria de prova do bolso da calça situado junto do joelho. — Saí daí seguindo o rasto do chinelo pelo caminho. Andei, andei, andei, sempre atento no chão. Depois de andar mesmo muito, naqueles lados do Kaliapu-de-baixo, ainda quase que perdia as patas. Mas, com muita vigilância, não custou recuperar. Os pés findaram mesmo perto da casa deste mancebo.
— E daí? — ignorou o IC fazendo cara feia. Mas em questão de segundos, uma ideia brotou. — Aliás, espera aí… então é verdade que a falecida foi mesmo bruxa, né?!
— Bem…
— Quer dizer que ela tentou capanicar um gajo…?
— Bem, chefe, até eu desconfiei. Também achei isso, mas só no princípio…
— Estás outra vez a desesclarecer. Fala como homem, pá! É ou não é? Ainda tenho de matutar bem o que fazer com o kota Mário. O homem é teimoso, meu. Engoliu a verdade mas não facilita processo…
— Bom, é como estou a explicar. Segui as patadas das chinelas da falecida até onde ultimaram, e também parei. Alguma coisa me disse para olhar atrás. Assim que olhei, vi o cartão de morador desse camarada aqui.
— E o camarada explanou o quê quando foi interceptado? Mostra-me lá o cartão!
— No começo, disse que não sabia de nada. Mas quando mostrei a evidência, panicou. Tentou me subornar com cesta básica da lavra dele, litro de 63, tabaco e fato completo.
— É verdade isso, ó rapaz? — dirigiu-se, arrogante, o IC ao suspeito.
— Chefe, eu tinha medo de ser chamado reacionário. Deixar perder o cartão de morador é contra a revolução dos filhos da nação. Só por isso…
— Enfiem-me o gajo na cela até segundas ordens!

O caso já ia no quinto dia. Sem progresso. O IC mostrava sinais de desespero. Nunca imaginou, nos seus vinte e tal anos de dirigente policial, que a vida do município viesse parar, como estava a acontecer, por causa da morte de uma pessoa. Logo uma albina, que nenhum kaliapuense gostaria de ter como mulher (de tal modo, que as grávidas estavam expressamente proibidas de qualquer contato com albinos, receando vir a ter algo igual).

Chegou ao Comando Municipal por volta das 8,30 horas. Desceu do seu veículo oficial, a única ambulância operacional no município, cabisbaixo. Receava perder o controlo da situação e haver fuga de informação para a capital da província, o que estragaria o plano que idealizou para granjear mais uma promoção. Sentia-se conspirado pelo destino e abandonado pela sorte. Pensava até em consultar-se com o kimbanda. Era um impasse inexplicável e humilhante, pois acreditava ter tomado todas as providências necessárias para o esclarecimento do caso, que no início até pareceu simples.

Caminhava, apressado, em direção ao gabinete, certamente para mais uma meditação tático-estratégica, quando o IC se viu interrompido pelo Oficial-Dia:
— Chefe, há um detido que, desde ontem às 20,00 horas que o Chefe foi, nunca parou de chorar. Ainda duvidei quando o cozinheiro me disse. Ele ia levar chá com batata-doce e foi assim que notou. Até parece mentira, homem chorar como se fosse noiva no altar?!
— Ó Chanas-do-Leste, odeio essa tua sabotagem do tempo… Abrevia! O detido é o velho Mário, não é? Eu já esperava que confes…
— Me dá licença de interromper, mas não é o kota Mário, IC.
— Então, mas… conta-me lá isso direito.
— O cozinheiro é que notou, IC. O gajo, desculpa chefe, o camarada, diz que sem o doutor não pode locuçar.
— Mas que doutor é esse que infiltra autoridade dele na minha jurisdição?
— Aquele médico mesmo que não dá confiança, inclusivééh nos dirigentes.
— Manda-me já prender este médico suspeito. O país gasta plafón para se formar, até Cuba conheceu, e vem aqui no município colaborar na sabotagem da tranquilidade?
— Agora já, IC?
— Tu ainda não percebeste que temos um caso por esclarecer o mais rápido possível em prol do município? Anda! Corre! Já! Mas, antes disso, traz-me esse criminoso chorão. Está doente o cabrão, digo, o camarada?
— Doente, doente, chefe, ele não parece. Só que não colabora muito com a justiça. Não falou, só disse que quer o médico. É o mesmo adido da maka das chinelas da morta.
— Ainda estás aqui, ó Chanas? Não devias estar já no terreno para me trazer esse medicozinho?
— Até já, IC! — bateu à pala e partiu.

Estava em alta prontidão a polícia, de tal forma que cada agente de captura andava já com notificações assinadas, faltando apenas inserir a data e o nome do acusado. Vez ou outra, os sipaios-do-hoje-em-dia aproveitavam-se do cheque em branco para cometer excessos. Havia ainda na corporação os mais espertos, que usavam da chantagem para extorquir dinheiro ou víveres nas lojas do povo. Não eram poucas as carências da esquadra, superadas apenas pelo espírito de desenrascar. O único carro disponível no município era a ambulância que, por força da conjuntura, ao mesmo tempo servia de Jeep do Investigador-Comandante. Um carro temido no município, porque a sirene tanto podia ser de urgência hospitalar, como podia anunciar operação policial. «Uéon, uéon, uéon», retinia a viatura pelas picadas do Kaliapu, espalhando poeira e muita especulação.

Mas o agente Chanas-do-Leste era patriota demais para se entregar a tais traições à farda e ao IC, a quem tinha por ídolo secreto. E cumpria as ordens do IC sem pestanejar, da mesma forma que o gatilho obedece ao dedo. E foi na ambulância, já agora em operação policial, que se enfiou o agente Chanas-do-Leste rumo ao Hospital para capturar o médico.

Sempre eficiente nas missões que lhe fossem incumbidas, o agente Chanas-do-Leste trazia, com ares de grandeza, o médico sob custódia, dirigindo-se ao gabinete do IC. E afinava a garganta para dizer «missão cumprida, IC!» e ser recompensado com palmadinha no ombro.

No mesmo instante, encontrava-se na esquadra o grupo de mulheres revolucionárias, que vinham prestar apoio ao IC e inteirar-se do progresso.

O médico saudou as senhoras, que já estavam de saída, altamente trombudas. Tinham acabado de ouvir da boca do IC que o médico estava implicado no crime. Não era isso o que esperavam do primeiro médico na história do município com o país já independente. Não era mesmo! A chefe da delegação pensava mesmo em sugerir às autoridades o fuzilamento do médico ou, no mínimo, a sua expulsão do município, mas não sem antes levar uma tortura em praça pública pelo vergonhoso crime.

Dr. Zé Luhaku bateu à porta do IC e foi convidado a entrar:
— Bom dia, Sr. Investigador-Comandante.
— Bom dia, ilustre médico. — respondeu o IC com sarcasmo. — Como estás?
— Calmo e assustado ao mesmo tempo. — forçou um sorriso. — E o IC?
— Menos mal. — encheu as bochechas, expirou o fumo, poisou o cigarro no cinzeiro e esfregou as mãos. — Como o ilustre camarada médico, e qualquer compatriota de boa fé, deve saber, aconteceu recentemente um ato violento. Um homicídio bastante frustrado…
— Sim, sim, tenho conhecimento. O município é pequeno e facilita a comunicação.
— Pois é. Quando o meio é menor, a pressão é maior, meu caro quadro. Ainda bem que sabes, assim me facilitas o processo.

O IC puxou da gaveta o cartão de morador. Colocou-o sobre a mesa com a parte principal virada para baixo, para ver até que ponto iria a curiosidade do interrogado, um truque que também fracassou. E aproveitando o momento, prosseguiu:
— O caro especialista conhece o dono deste cartão? Já viu este rosto em algum lugar?
— Não.
— Nega ter alguma ligação com ele?
— Não entendo a questão. Era para ter?
— Vamos lá ver se nos entendemos. No meu gabinete, pergunto eu. Está bom assim?
— Não se exalte, chefe, que não faz bem à saúde.
— Na tua chegada, o caro especialista disse que estava um pouco calmo e assustado ao mesmo tempo. Tem algo para me confessar?
— Não frequento igrejas! — reagiu com ironia o médico à provocação.
— Olha aqui, Dr. Zé Luhaku, este homem foi capturado ontem. O nosso agente seguiu o rasto do último chinelo que a falecida calçou em vida, desde o quartinho até desaparecer. Andou mesmo muito, e calha que a marca terminou no pátio do dono desta documentação, que foi achada durante a vistoria técnico-policial. Prontos, mas são segredos nossos…
— Está bem. E onde é que eu entro na história?
— Já chego lá, tenha calma, não adianta precipitarmos a chuva!
— As minhas desculpas. Só gostaria de entender o que me traz aqui.
— Pois, voltando à tua pergunta «e onde é que eu entro na história?», pois é. Acontece que, desde ontem às 20,00 horas até agora, o detido chora sem parar. Como diz o meu subordinado, até parece mentira um homem chorar como se fosse noiva no altar! Disse que nada podia confessar sem a presença do médico, como quem diz que só ele é que sabe a verdade. — o IC usava a manipulação como último trunfo. — É caótico, mas resolve-se.
— Foi observado o quadro psico-motor do detido? Não será trauma, se considerarmos a hipótese tomar contato com uma cela pela primeira vez?
— Não, meu caro especialista. Todo conterrâneo de boa fé sabe que o trabalho da polícia é tranquilizar. Se para tal entrar na cela, é caso do camarada entender que é para o bem do Kaliapu. É de agradecer até, porque aqui come-se e descansa-se.
— Posso vê-lo?
— Para quê? — reagiu, desprevenido, o IC. — O Agente-Sanitário já tomou as cautelas. Tá cinco por cinco!
— Pois, sendo assim, entendo ainda menos o que me mantém aqui. — dito isto, o médico foi dispensado para aguardar lá fora até segundas ordens, sem estar claro se seria para ir em liberdade ou para continuar o interrogatório.

O IC mandou chamar o detido chorão, que não parava de exigir «o doutor, o doutor». Fechou-se com ele no gabinete e iniciou o interrogatório:
— Tenho crime por esclarecer e tu ficas o tempo todo a sujar de lágrimas o meu quartel! Fala de uma vez. Quem comparticipou no crime?
— … O doutor, Chefe, o doutor…
— O médico também colaborou? Assumes o que dizes?
— Não, chefe. O doutor, Chefe, faz favor de chamar só o doutor…
— Ó rapaz, isso aqui não é um «já, sim, não, talvez», OK?! Aqui só há uma palavra. O doutor está ou não implicado?

Chamado outra vez para interrogatório, o médico juntou-se ao IC e o detido numa altura em que o anfitrião já espumava, tal era a sucessão de impasses.
— Doutor, você conhece este camarada?
— Não, IC, nunca o vi mais gordo!
— E tu, compatriota, conhece o médico? — indagou, apontando o dedo indicador no centro da testa do rapaz.
— Sim, Chefe… Nunca falei com ele, Chefe.
— Caramba, pá! Assim não há paciência que aguente! Merda, pá! Vocês afinal se conhecem ou não?
— Chefe, queria falar com o doutor no canto. — choramingava o jovem, que tinha já a camisa ensopada de baba, lágrimas e ranho.
— Isso aqui não é casa das vontades, ouviu bem? Temos um caso cabeludo e você até podia colaborar com a informação para chegarmos ao assassino, seja ele INTELECTUAL ou camponês. Mas não. Prefere sabotar…!

Retirou-se o IC do seu próprio gabinete para deixar os dois suspeitos «altamente perigosos» concertarem o que desejavam:
— Então, meu jovem, por que razão me entrega à polícia?
— Doutor, não tenho outra saída. Vou falar mesmo…
— Mas eu não sou advogado…
— Anteontem apareceu pus no meu «canhão». – faltou coragem para dizer pénis. — Um amigo disse que era cikata…
— Esquentamento ou gonorreia. É isso?
— Sim, doutor.
— Os meus amigos me deram raiz de mamoeiro, tomei e nada! Meti lá óleo de jibóia, mas também nada! Tentei pedir penicilina, mas só há penicilina para casos de urgência. Cada dia que passa, o canhão tá inflamar, dói bué mijar.
— E então…?
— Então, doutor, os meus amigos me falaram vou ter problema para fazer filho, que vai nascer com boca de kandimba…
— E…?
— Já não aguentei. Como tenho sistema nervoso, fui pegar a pessoa onde acionei e, no caminho, lhe bati mesmo muito. Como é que uma pessoa vai me dar doença ainda por cima fala «não sabia»? Ainda se fosse uma mulher normal, era outra coisa. Agora todo município vai saber que me meti com uma albina, que é uma porca de uma puta?

O médico passou a mão na cabeça do rapaz, fez-lhe festinha no nariz e abanou a cabeça. Começava a fazer sentido a presença de um médico naquele «esquecido» município. Passou a receita, contou a história ao IC e meteu-se na ambulância rumo ao hospital à busca de medicamentos.

Estava instruído o processo. Qualificação: homicídio voluntário. Motivo: o autor confessou, e citamos, «não aturei uma mulher me dar cikata, ainda por cima uma albina», fim de citação.

Uma comissão formada por dois agentes e o motorista da ambulância foi indigitada a conduzir o criminoso à capital da província, onde havia cadeias mais seguras. Temia o IC que os munícipes invadissem as celas para fazerem justiça por mãos próprias, coisa que não devia permitir, embora fosse o que o seu lado íntimo mais gostaria que acontecesse.

Pelo perigo da via e dada a longa distância que separava o Kaliapu da capital da província, a comissão só poderia regressar uma semana depois.

Mas, curiosamente, duas horas após a partida, a comissão voltava, estarrecida, ao ponto zero. Missão abortada. A cor original da viatura estava irreconhecível. O pessoal não estava pouco enlameado. destacava-se só o vermelho da terra molhada. Algo de muito estranho tinha acontecido. Para os que testemunharam o milagre, este, era difícil contar, do mesmo jeito que era difícil entender como foi logo chover com trovão e tudo em época de cacimbo. Mas naquele dia bateu mesmo uma chuva grossa de granizo. E só cessou depois de um forte trovão ter retirado do carro o criminoso, atirando-o violentamente ao chão, já sem vida. Ficou sem efeito a missão. Daí o regresso ao Comando Municipal para se registar a ocorrência e tratar do resto.

Contentes pela justiça da mãe natureza, os munícipes começaram a acreditar que os albinos são especiais e têm diamantes no cérebro.

Por Gociante Patissa (In "A Última Ouvinte", copyright 2009, Gociante Patissa, União dos Escritores Angolanos, 1ª Edição, Luanda , 2010 (versão com base no novo acordo ortográfico))
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4 Deixe o seu comentário:

Anónimo disse...

"Foste cagar? Mas a tua mulher, a velha Ndumbila, disse que não tens o hábito de sair de noite… Como é que se explica tua saída fora da agenda?!"

Sim ! Um gajo já não pode "disbingar" a vontade?

Bom texto amigo. Já agora podias aumentar o tamanho da letra?

Bangula

José Doutel Coroado disse...

Caro G. Patissa,
minhas felicitações pela excelente "estória" (espero eu que seja uma "estória").
me agarrou desde o início e houve momentos em que me senti nos locais do acontecido.
abs

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Caro José Doutel Coroado, deixa-me expressar o gosto que é registar sua visita, confirmada pelo comentário. A estória é ficção, no entanto explorando certa superstição que engrossa a ignorância em meios rurais.
Obrigado pela visita, volte sempre, que farei o mesmo. Abraços!

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Mano Bangula, grato pelo elogio. O texto deveria ser mais curto, mas "esse rural aqui (eu)" se deixou levar pela descrição de paisagens - é uma vergonha - hehehehe. Se aumento o tamanho da letra, deixo a nu o defeito, de tão longo que o texto vai ficar. Mea culpa. Confesso que me sentiria mais à vontade em partilhar o livro como tal, mas como o "maldito" nunca mais chega, ne?!, vou adiantando uma ou outra coisa para partilhar aqui no Blog. Abraços!

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