quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Ensaio | SÓ MULHERES CANTAM NA PEDRA DA FUBA: O MILHO E O DESCANTE COMO PILARES DA CULTURA UMBUNDU [actualizado]



Gociante Patissa, Luanda 17-21.09. 2025 | 

Da sabedoria popular nigeriana lembra-nos o provérbio que “o homem não vai longe de onde se assa/cozinha o seu milho” (em inglês, “a man doesn't go far from where his corn is roasting”), um apelo à memória das nossas origens e laços em cada etapa da vida.
 

Mais uma vez o milho aparece no eixo da construção societária pela cultura alimentar e espiritualidade, o que implica atravessar e catalisar uma série de processos, valores e saberes de povos de origem Bantu, na região austral do continente africano. 

 

De acordo com o Relatório do Mercado de Milho da África, “o tamanho do Mercado Africano de Milho é estimado em US$ 41,40 bilhões em 2024, e deverá atingir US$ 57,26 bilhões até 2029, crescendo a um CAGR (taxa de crescimento anual composta) de 6,70%.  O milho é considerado o alimento básico para a maior parte da África Subsaariana (...) África consome 30,0% do milho produzido no mundo, sendo a África Subsaariana responsável por 21,0% do consumo. Cerca de 14 países em África consomem 85,0-95,0% de milho como alimento básico” (Mordor Intelligence 2023).

 

À parte a economia e com foco no grupo etnolinguístico ou sociolinguístico Ovimbundu (predominante no sul, centro e sudoeste e faz mais de 1/3 da população de Angola), o nosso campo de pesquisa combina a linguística, sociologia, antropologia e a vivência, explorando o milho e o imaginário como factores de ignição na dinâmica das estruturas sociais e argamassa cultural. 

 

O presente ensaio nasce da análise de um curto vídeo (FAS 2025), que reporta a tradição de transformar o milho em fuba de forma artesanal por mulheres de uma comunidade rural de Benguela, sentadas num rochedo à beira do rio (em Umbundu, “ohanda” ou “esenje”). E ao compasso dos pisos de madeira com que trituram o milho, essas mulheres improvisam em coral de harmonia impecável uma antologia de cânticos declamativos.

 

O pirão ou funji de milho é o prato principal na essência Ovimbundu, acompanhado de carnes, peixe e verdura, superando os restantes cereais, designadamente a massambala, o massango e o trigo. Do milho derivam outros pratos, como “asola” (canjica), “ekende” (panquecas), sem esquecer a bebida não espirituosa e o maior símbolo de hospitalidade, “ocisangwa”. É com o milho que se ensina a rapaziada a montar armadilhas de pássaros, a par do farelo com que se prospera na suinicultura. A sêmola do milho chegou mesmo a emular o arroz para animar a mesa especial de Natal, nas décadas de 1980 e 1990, ante a quebra da ligação entre o interior e o litoral por conta da guerra civil que assolava o País. 

 

“O cimbundu, como qualquer Bantu, tem um ouvido bastante educado para o descante. Ele canta quando ara a terra dura (…); canta quando moe no rochedo no alto da montanha ou no almofariz seguindo um ritmo cadenciado (…); canta quando pesca” (...) Todas essas imagens são levadas ao âmbito metafísico e ético, numa linguagem metafórica, poética, única capaz de exprimir a beleza, o encanto, o espanto” (Tchikale 2011:17).

 

É sobre a inserção deste instituto de iniciação feminina que filosofamos nesta sequência de ensaios sobre o milho na antropologia Umbundu. Um é intitulado A ORIGEM DO NOME LUSATI: Um pouco de antroponímia umbundu (Patissa 2021) e outro, Oratura: Breve nota sobre o sentido etimológico da bebida “ocisangwa” (Patissa 2013).

 

A mensagem e a sua alegoria no plano dos hábitos e costumes

 

“Lele / si topola / si topola vali we” (oh, eu não desmato / já não desmato)

“Nãwã ka topola / ame si topola” (o cunhado recusa-se a desmatar / e eu mal consigo)

“Lele / okwenda umbumba kuvala” (oh, o quão sofrida é a vida de viúva)

“Visolo we / mweya ombimba / yele” (o arvoredo de mulembeiras foi invadido por bimba)

“Epungu vateyateya liocindongo” (o milho ideal de colher é o de espigas multicoloridas).

“Ondambi vayongoyola yukusole” (beldade para conquistar é aquela que gosta de ti).

 

A primeira parte da cantiga tem um alcance social e gravita em torno do verbo “Okutopola” (abater com machado ou catana). Neste contexto produtivo remete a desmatar uma parcela de terra para cultivo, papel socialmente atribuído ao homem. 

 

Dado que os valores do meio tradicional são de grande solidariedade para com a franja vulnerável (as crianças, os idosos, as pessoas com deficiência e as viúvas), torna-se, pois, insólita a negação a uma viúva que pede socorro para actividade braçal de subsistência, como é o caso de desmatar a terra de cultivo, ainda mais a desfeita vinda de um cunhado (grau que abrange também amigos e conhecidos do finado). Tal afronta à moral e ao capital social é logo inserida no repertório declamativo do rochedo, compondo-se assim mais um belo canto dolente feminino de autoria comunitária. O lamento expressa o mecanismo social de protesto e sanção, como desenvolveremos mais adiante.

 

Já a segunda parte tem um alcance mais simbólico, sem deixar de ser uma metáfora da harmonia entre os seres e a sua ligação espiritual com a ancestralidade e com a natureza, à volta de três tentáculos: o vegetal, o gastronómico e o afectivo.

 

O arvoredo de mulembeiras foi invadido por bimba sugere uma tensão a favor da árvore da sabedoria e sagrada (usolo), cuja fronde dá a sombra suficiente para se transformar em espaço de diálogo e de convergência (onjango). A mulemba oferece ainda raízes aéreas de uso medicinal (que simbolizam, por outro lado, a barba dos ancestrais), ao passo que a bimba, de caule leve, de pouco mais serve do que transformar-se em banquinhos e canoas artesanais. A sua presença junto à mulembeira ilustra a corrosão de valores. Quanto ao segundo e terceiro tentáculos, estes sentenciam que o milho ideal de colher é o de espigas multicoloridas; beldade que vale a pena conquistar é aquela que gosta de ti. Em termos estéticos emerge um trocadilho, posto que “ovisolo”, plural de “usolo”, partilha morfologicamente a mesma radical e fonema com “okusola” (gostar ou amar).

 

Para aprofundar a compreensão deste manancial da oralidade, desafiámos algumas fontes orais com recurso a plataformas digitais, das quais destacamos as três que se seguem: 

 

“A mbimba desenvolve-se em pântanos ou à beira-rio, Usolo é em terreno firme, sem exigência de rega quando já grande. Usolo tem uma copa grande e acolhe ninhos de várias aves. A mbimba cresce em tronco único e erecto, vai diminuindo o tamanho conforme cresce. Usolo tem um atributo medicinal que a bimba não tem” (Justo Cataca 2025). 

 

“Epungu lyotchindongo”, conhecido noutras variantes como “ocitengasova”, representa a convivência harmoniosa entre povos diferentes na mesma aldeia. Partilham o mesmo espaço, os mesmos meios de produção, porém cada um preserva a sua identidade. No momento da colheita, quando o camponês se depara com uma dessas espigas, separa-a das demais e guarda (...) Tem o nome de tchindongo, porque faz parte do conjunto sagrado de informações femininas simbolicamente codificadas do grupo: Ndongo, olundongo e otchindongo", coisa que só chega a descodificar quem for perspicaz ou “tchisukila okwenda undongosi”[1] (Sakaungu Sangalangui 2025).

 

Estas espigas raras “na dimensão do povo ovimbundu representam unidade (o milho branco e o vermelho são principais). “Ame pungu liyela. Sikwete epañu” (sou milho branco. Não rejeito ninguém). É assim que os mais velhos dizem” (Job Sipitali 2025).

 

Estrutura, forma e filosofia do cancioneiro Umbundu/Bantu


O cancioneiro Umbundu, como de resto não andará muito distante das demais línguas/culturas irmãs de matriz Bantu, é fragmentado, constituído por números breves de versificação livre, poucas estrofes e elipse frequente. Os trechos funcionam ainda melhor quando entrelaçados em antologia temática e por vezes, até, rítmica. Olhando para aquilo que é dado a tocar pela imprensa, são os casos das rapsódias interpretadas por Bessa Teixeira (sulunlã), Patrícia Faria (Tambula Osaya) e Duo Canhoto (Omboyo).

 

Não se podendo dizer que se trate de canções datadas, é seguro afirmar que impera no seu âmago o princípio da contextualização, ou se quisermos, a estratificação contextual por subgéneros que levam em conta factores sociais como a idade e o género, entre outros.

 

“Temos cantigas de amigos, cantigas de amor, cantigas de escárnio e de maldizer, canções de casamento ou epitalâmios, hinos à vida (acções de graças), canções bucólicas, etc.” (Tchikale 2011:18).

 

“Há também canções específicas para assuntos ou ocasiões específicas que se celebrem: nascimento, óbito, ritos de iniciação, casamento, lavoura, caça, acolhimento de um hóspede especial, recordação nostálgica de um ente querido, etc”. (Bonifácio Tchimboto e Eusébio Tchamawe 2019:51).


Margarido, Alfredo (1964:5) assevera mesmo que “não deixa de ser importante notar a conjugação existente entre a orientação que se regista em tais canções e a espinha dorsal que podemos encontrar na poesia erudita angolana”.

 

“No campo da literatura, sobretudo das narrativas de intenções pedagógicas condensam sistemas filosóficos. Porquê? Porque ensinam causas e efeitos de comportamentos cívica e moralmente desviantes, perniciosos ao equilíbrio e harmonia da vida comunitária dos Bantu” (Macedo 2010:25).

 

Assim, está visto que tanto o milho como a terra transcendem no imaginário e na memória colectiva a presença funcional de alimento e enquanto meios de produção. A gastronomia é o cabouco da cultura de um povo. No processo em si de idas e vindas entre o lar e o rio ou entre o lar e a “Ohanda/esenje” constrói-se a escola de educação para a vida de mulher para meninas, reservando ao universo feminino a privacidade para tratar dos seus tabus. O magazine social entoado ao transformar milho em fuba é outra conquista em termos de expressão em sociedade patriarcal, de recato e submissão. O rochedo que alberga as canções sabe muito mais da intimidade da aldeia do que a figura do próprio Rei.

 

Referências:

 

Bonifácio Tchimboto e Eusébio Tchamawe. 2019. Ética e Pedagogia na Literatura Oral Africana - Estudo Etnolinguístico do Umbundu. Vol. I. 1.a ed. Benguela: Factalux.

FAS, dir. 2025. «Si topola» - cancioneiro Umbundu com mulheres do Kaseke Benguela.

Job Sipitali. 2025. «Conceito e alcance proverbial de “Epungu lyocindongo” na cultura e imaginário Umbundu».

Justo Cataca. 2025. «Relação entre as árvores Usolo e Ombimba na cultura e imaginário Umbundu».

Macedo, Jorge. 2010. A Dimensão Africana da Cultura Angolana. 2.a edição. 35.o Aniversário da Independência Nacional. Luanda: INIC/Ministério da Cultura.

Margarido, Alfredo. 1964. Canções Populares de Nova Lisboa. 1.a ed. Lisboa: Casa dos Estudantes do Império.

Mordor Intelligence. 2023. «Milho África Tamanho do Mercado». https://www.mordorintelligence.com/pt/industry-reports/african-maize-market.

Patissa, Gociante. 2013. «Oratura: Breve nota sobre o sentido etimológico da bebida “ocisangwa”». http://ombembwa.blogspot.com/2013/03/oratura-breve-nota-sobre-o-sentido.html.

Patissa, Gociante. 2021. «A ORIGEM DO NOME LUSATI:  Um pouco de antroponímia umbundu aproveitando a moda». https://angodebates.blogspot.com/2021/05/a-origem-do-nome-lusati-um-pouco-de.html.

Sakaungu Sangalangui. 2025. «Conceito e alcance proverbial de “Epungu lyocindongo” na cultura e imaginário Umbundu».

Tchikale, Basílio. 2011. Cantares dos Ovimbundu: 135 canções em Umbundu. Colecçâo Ciências humanas e sociais. Luanda: Kilombelombe.



[1] A fonte utiliza a grafia católica ainda em uso para as línguas Bantu em Angola




 




Share:

0 Deixe o seu comentário:

Gociante Patissa recita poema "Alugam-se velhos" na RTP África

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Com tecnologia do Blogger.

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Categories

Tags

Publicações arquivadas