“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.” (Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881)
Se este rebento chegar a crescer, forma ganhar e com isso se lhe infectar alguma tentação de cariz estético que seja, meus caros, confrontai-o com o demérito do seu parto. Não passa de escrita de bordo. É que educar a gente até educa, mas uma vez consumada a travessia da porta o que mais podemos sobre ele em paternidade? Aí fez-se já maior de idade, é da esfera pública o texto, personalidade própria e tudo.
Ademais, há já uns anitos que prescindi da expressão mal-educado. Mas então levar o cavalo (quiçá a esposa dona cavala) ao rio significa forçá-lo a beber água se não quer?! Mal-educado? Quem nos garante?! Pais genuinamente fracassados no papel de modelos de educação para a vida existem aos montes. Filhos e filhas desastrosos em encaixar normas básicas de pertença social é capim, adolescentes infinitos, vítimas de tudo e todos. No meio-termo está o instinto. Mas evitemos só politicagens!
Um dia fujo do trabalho para brincar com a minha filha. Desta frase libertária e terna nada me cabe, excepto o trabalho. É uma imagem inquietante que me habita há por aí quinze anos depois que a topei na saqueta de açúcar numa icónica pastelaria do Lubango (que descansa em paz), à direita da Maternidade. A falta de contexto alarga as possibilidades de tom. Podia bem ser a proclamação de um ultimato ou simplesmente a voz da impotência. Certo é o dilema face a dois confortos que não partilham o mesmo espaço na vida de um pai: as horas de trabalho (que garantem o conforto material à família) e as saudades do apego (que causam desassosego). Leis e regras foram inventadas para perturbar a dedicação a crianças amadas, certo?
Anteontem no novo calçadão do Jardim Zoológico, um homem que ali namorava a sombra pediu-me que lhe fotasse. Esmerei-me para minimizar a pobre qualidade de imagem do telemóvel do conterrâneo. Tecnicamente terão sido as piores imagens que alguma vez captei, mas era notória a ansiedade de quem se encontra distante da família há seis meses. Tem trabalho, precário, claro, saltitando entre um posto e outro ao volante. Ofereci-lhe o meu livro de crónicas. O APITO QUE NÃO SEU OUVIU! Exclamou entre a nostalgia e o horismo. Eu no Sambizanga era da TURMA do APITO, completou. A brigada de vigilância do tempo do administrador Tomás Bica? Ya, isso!
E nesse contacto de cinco minutos, o quarentão ao saber que estava prestes a viajar supreende: tenho coisas a enviar para minha filha, podes levar? Sorrio e penso, já fui profissional com década de indoctrinação em segurança aeronáutica, não nos conhecemos. O não é usave. Mas todas as reprovações ficam ilibadas: é só um pai.
Nem era a minha primeira carapuça de carrasco, por nos vermos obrigados a pender para o lado careta, o da regra. Certa vez um cidadão insistia que o avião cortasse os motores e voltasse a abrir as portas para embarcar, pois acabava de receber notícia da filha doente na província de destino. Não tinha bilhete comprado, não havia feito check-in (naquele ponto mesmo isto era irrelevante). O que pedia era impensável em aviação onde o pessoal de terra é o lado mais fraco da corda. Como responsável do turno, sobrou-me lidar com a cólera. Você parece não tem filhos, né?! Hesitei e acabei por responder como ele queria ouvir e já sabia, que ainda não. Então é por isso!, lá arremessou. Passados alguns dias o jovem, agente da autoridade colocado no aeroporto, lá veio pedir desculpas. Era só um pai. Pela nossa criança o infinito.
Gociante Patissa | 23 Outubro 2024, 03h37 | DT653, Lisboa-Luanda | www.angodebates.blogspot.com