Companheiro Handanga, espero que te encontres bem aconchegado pelo coro de anjos de uma dimensão
paradisíaca em que muito creio que crias. Que o diga Ndondi, a missão.
Tive a sorte de nunca ter privado contigo, nem como Tinox tampouco como Handanga, o que felizmente me concede o privilégio de seguir convivendo contigo e com a grandeza da tua existência num patamar de imortalidade.
Porque tu, meu camarada, no choro da tua caneta, no laminar da tua mensagem, no encanto do teu canto, plantas é mitos directamente no coração do povo, do nosso povo. E muito bem plantadinhos, é bom que se acresça, como aquela avó narrada pelo personagem Man’Toy no parágrafo de fecho da minha novela Não Tem Pernas o Tempo. Aquela avó que vivia cosendo e descosendo cantares, reinventando-lhes ora as garras, ora o veludo, tal como tu, portanto, com dotes de plantar mitos, perde pois a faculdade de perecer, falecer ou morrer. Porque o mito não cabe na morte, triunfa sobre ela.
Pedem-me que escreva linhas de uma circunstância que se soma à pesarosa nuvem que teima em arrebatar poetas ultimamente. Miguel Gullander, o também professor português em Luanda, a peruana Júlia Wong e outro português, Nuno Júdice, todos a transcenderem assim como gotas finais da cabaça de cisângwa combundi culturalmente nutritiva.
Enfim, só António Cardoso na causa, como diria o nosso povo, no seu evangelho poético da inutilidade do choro. «Se choramos aceitamos. É preciso não aceitar.» Portanto... celebremos a obra e a memória, o legado e o obreiro, em termos do seu reflexo em nossas formas de ver e viver a angolanidade. Honremos, conforme nos permite a recolha do mosaico de experiências atravessadas pela música Handanguiana.
Recuemos. Dezembro de 2018. A tarde cede lugar ao manto que pinta no céu o ponto mais alto da confraternização de fim de ano no quintal Rádio Benguela, com Adão Filipe a encabeçar. E tu, músico e compositor Handanga, acompanhado pela Banda FM, revisitas o repertório que é já desde 2002 uma prateleira prenhe de clássicos made in planalto central, cuja marca é o cruzamento entre a recolha etno-musical e o retrato social arraigado nos mais desfavorecidos. Temas como “Ndatekateka”, “Paulina”, “Abílio”, “Olonamba” despontam nas delícias da assistência.
Chegada hora do fim do concerto, os artistas iniciam os procedimentos de desmontar o palco, para o protesto amigável do público. Bis, bis! Handanga agradece o carinho e tenta convencer o público do contrário. Em vão. Volta-se à primeira forma para só mais duas. E lá o bis é servido mas o público segue insaciável, a noite vai longa, os músicos, porque de carne e ossos são feitos, rendem-se ao descanso. E tu, qual soldado disciplinado, cumprias a ordem, na proeza do bis de um bis, já só em companhia do guitarra ritmo.
Handanga entra na vida da muitos de nós em 2003 na ressaca do calar das armas, com aquela colectânea denominada Sucessos do Huambo Volume 1, que de alguma forma alicerça o processo de reconstrução e reconciliação da família angolana a bordo das ondas da rádio ou dos meios rolantes que desafiavam os sulcos no lugar das estradas nacionais, onde o belo, o crítico e o proverbial se conjugam nas vozes de Zé Katchiungo, Viñi Viñi (que viria a partir também de diabetes, em 2007), Bessa Teixeira e o General Jafar. Era a nossa nova Angola, tomada por uma onda romântica no sentido de corrigir o rumo em direcção à prosperidade, ao fim de três décadas de guerrilha fratricida e que só nos dividiu.
Lembro-me de uma viagem por estrada durante esse período, de Benguela a Lubango, daquelas aventuras românticas da juventude com uma beldade estrangeira de expressão inglesa, quando nunca se conseguia transpor os quatrocentos quilómetros em menos de onze horas, tal era o estado de destruição. No velhito Hiace em que seguíamos, o trajecto todo era ao som de uma só cassete de sessenta minutos em auto-reverse, o que significa a mesma música de hora em hora. De modo que até chegarmos ao destino, qualquer um a bordo conhecia de cor e salteado o repertório e o teor da mensagem na língua umbundu.
Que siga tocando a tua rica música, companheiro Handanga, uma música que não só toca, como afinal nos toca... profundamente. “A mbwale ndakwivaluka, akome!”
Gociante Patissa | Lisboa, 19 Março 2024 (publicada no Jornal de Angola, edição de 24.03.2024)
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