Atrás de mim, um céu carregado de chuva anunciada pelos humanos da meteorologia preenche a moldura da janela. Era suposto desfilar nas primeiras horas de terça-feira, agora desmentida por um meio-dia a espreitar seco o telhado. Diante de mim, uma tela em branco, um teclado e as ideias em vôo espiral, mas aterrar mesmo, que é bom, nada! Na banda, uma cidade em prantos, é a Filomena Maria, carismática locutora de Ombaka, de malas feitas para o além.
E no pulsar desses minutos não produzidos, penso na ansiedade da gente envolvida no TELEGRAMA, jornal digital que se propõe chegar nos próximos dias ao público angolano. Tenho o compromisso de assinar uma coluna na edição inaugural a convite do seu mentor. É a história que se repete volvidos sete anos sobre o parto do Correio do Sul (de vida efémera e descontinuado ao quinto número) onde dei o meu contributo voluntário na editoria cultural.
De lá para cá muito mudou em nossas vidas profissionais, a começar por já não residirmos na nossa velha província. Daí que ao receber a convocatória pendi logo para a indisponibilidade, visto que há uns anos abracei o ramo da assessoria de imprensa, o que recomenda um certo distanciamento em relação à rotina jornalística. Aliás, já-se se diz, “cada escolha é uma renúncia”. Ainda assim, cedi parcialmente, perante o momento histórico na vida de um kamba.
Entre mim e o Nelson, que também é Sul, há uma Benguela a transcender nas suas teimosias juvenis, no imaginário, na sociocultura, no mito do rio, no sal das ondas, enfim no capital colectivo sem fronteiras chamado memórias. Benguela, há que dizê-lo, é uma mãe que se faz mão, aberta e abundante, para quem escolhe poisar ou para o impulso de quem siga o vôo livre.
Longe da banda, serve de consolo a velocidade das redes sociais, mau grado nem sempre virem notas alegres. Até começo a duvidar se esta chuva não será, afinal, lágrimas de uma Benguela que vê partir a sua Filó, das mais alegres acácias da 92.9 FM. Cala-se uma conselheira, terapeuta de casais, uma patriota também talhada para lidar com gerações mais novas.
Estamos nos estúdio em Dia do Herói Nacional, quatro jovens mais a locutora e o operador de som. O poeta Mbangula Katúmwa, o líder juvenil Cristiano Fernandes, o jornalista Nelson Sul e eu. A pauta gira em torno das façanhas de Agostinho Neto, papo conduzido pela carismática Filó e o recital intervalados por música de circunstância. A dado passo alguém questiona quanto tempo mais faltará para que as figuras de outros movimentos sejam também reconhecidas heróis. Fica-me a memória triangular desta irreverência cidadã do Nelson, que apanha todos desprevenidos no ido consulado do presidente JES, aspirando uma Angola de inclusão.
A Filó já cá não estará para acompanhar a afirmação dos putos que despontaram na década de 2000 e que tão carinhosamente amparava para emitirem opiniões. Tive a sorte de participar em duas caravanas de assalto à sua casa para homenagear a voz aposentada, uma com o Yuri Mulaja e o Mbangula, a outra deu-se ainda este ano com o pessoal do Ombaka Teatro.
Eis pois a crónica de um adeus impossível à Filó, eu porque temporariamente atirado nas europas, o Nelson porque retido na capital a dar parto ao seu projecto jornal TELEGRAMA.
Gociante Patissa | Escritor | Lisboa, 18 Outubro 2022
(*) Crónica publica na edição inaugural do jornal digital O TELEGRAMA
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