Ouviu-se de repente um estrondo forte, tão forte que a chuva que caía parou também para ouvir o que se estava a passar. E isso só piorou o silêncio denso. Corria qualquer coisa que contrariava a cor da água no piso alcatroado e reflectido nos intermitentes, algo rubro, reclamou a chuva, vejam lá vocês que alguém andou a adulterar o meu produto. Desde quando é que a água tem cor? Insurgiu-se a chuva lá do alto das nuvens, um estrondo aqui e outro ali, nada porém que se igualasse ao estrondo que parou o bairro naquele subúrbio. Mais a mais, começava a anoitecer. Começava, vírgula. Era já noitinha, as mulheres do campo, lavradeiras de enxada em riste, coluna concorrendo para uma escoliose, estavam já a tomar conta dos seus lares, sugadas por maridos e crias. É a tal vida, vamos fazer mais como? O tempo passava e naquele local do estrondo a aglomeração crescia, ninguém já falava mais em cinco limite. Os pneus cantavam, tantos curiosos que essa terra pariu. Agora fala o homem um. Bem, eu vinha e aí… O homem um não foi a tempo de concluir a fala, o homem dois tocou o apito. Pri! Pri! Pri! Você é culpado, sempre que não conseguires imobilizar a viatura, é excesso de velocidade. Nunca, senhor agente!, refilou o homem um. Isso agora é liberdade de expressão, expressão e manifestação. Vocês, agentes, não podem trazer sempre a razão no bolso. É ouvir o cidadão, ok?! Primeiro ainda é perguntar. Desliga só ainda a sirene, faxavori, o pirilampo já resolve. Fala mesmo, boa noite, cidadão, como foi? Aliás, antes de tudo e em primeiro lugar, é se solidarizar com as pessoas. Ora essa, interrompeu o homem dois, pistola na cintura, braçal reflector de polícia de trânsito. Então mas assim estou a fazer o quê?! Estou a namorar?! Perante um decúbito, a prioridade da linha de investigação recai para ali. Contra factos não há argumentos, é assim com todas as polícias. Mas, ó senhor agente, espera ainda um pouco, isso já era o homem um, o chaufer sinistrado. Nessa era de Covid, entre o morto e o vivo quem merece prioridade? Então você, desculpa-me lá tratá-lo, digo o camarada ou maninho, por você; acha que mortos somos úteis? Veja lá como se dirige à autoridade, está bem?, ameaçou o homem dois e continuou: meu senhor, é assim. Estamos perante um sinistro, a rodovia está obstruída, essa raça de desumanos a tirar fotos e mais fotos e você, agora te devolvo o pronome, quer falar mais que a minha farda? Mas, ó senhor agente, se um adulto desses se mete na estrada a correr em ziguezague contra a viatura iminente, atrás de um rabo de saia, eu é que ia fazer o quê?! Xê!, rabo de saia, não te admito, ya? Enervou-se a mulher um. Enquanto isso, a chuva, agora dividida entre a impaciência e a a doce tentação da fofoca, estrondeava um pouquinho. Mas e o desfecho? E vocês quem são? Somos a família do malogrado. Queremos justiça! Queremos justiça, queremos justiça! Estás a ouvir, ó camarada motorista? Estou mas, eu também assim nesse meio quem vai pagar os danos do meu Tundra? Queremos justiça! Queremos justiça, queremos justiça! E você, mulher um, o que tem a explanar? Eu vinha da loja, assim que vinha, mal desci do autocarro, o defunto e outros meliantes da paragem começou a tentar me tramancar, eu com medo, vou fazer mais como?, corri. Vou e volto, vou e volto, de um lado para o outro na estrada… Mas ó minha filha, interrompeu a mulher dois, é verdade mesmo que não podias fugir pelo menos só para fora da estrada? Assim agora o filho da outra lhe atropelaram, está parece papel dobrado em quatro? Isso se faz? Espera aí!, impôs-se o homem dois, o agente. O malogrado afinal era marginal? Mas, espera aí, acho que se fosse morria logo na margem e não foi o caso. Foi atropelado no meio da estrada, logo, acho que era do centro, nem de direita nem de esquerda. Mas o camarada polícia então assim está a falar à toa de como? Reprimiu a mulher um, a vítima. Ou seja, temos quantas vítimas afinal nesse emaranhado? Vou-te falar uma coisa, senhor agente, eu acho que se o camarada malogrou em flagrante acto de roubo tentado, a vítima aqui é o meu carro que ficou machucado. Bem, cidadão, assim ouvindo, acho que podes ter razão, porque o falecimento dele nestas circunstâncias de correr atrás da vítima, é remédio social. Acho que é isso. Aí, ai, ai, gritou a mãe do defunto, o que é que uma mulher de bem fica a fazer na via pública longe das casas, às dezanove que está escuro, até ser alvo de assalto? Mas a mãezinha assim está a falar mesmo com a boca? E a chuva não quis esperar mais, as partes recolheram-se.
Gociante Patissa | Benguela, 6 Novembro 2020 | www.angodebates.blogspot.com
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