"Conto os meus mortos e revejo as cicatrizes"
João Tala, In «Vida Cultural, Jornal de Angola», 09/10/11 |
O poeta e ficcionista João Tala lançou, recentemente, na União dos
Escritores Angolanos, o livro de contos “Rosas & Munhungo”. Tala é autor
dos livros “A Forma dos Desejos”, poesia, prémio Primeiro Livro da UEA, 1997,
“O Gasto da Semente”, poesia, menção honrosa do Prémio Sagrada Esperança do
INALD, 2000, “A forma dos Desejos II”, Chá de Caxinde, 2003, “Lugar Assim”,
poesia, UEA, 2004, “Os Dias e os Tumultos”, contos, Grande Prémio de Ficção da
UEA, 2004, “A Vitória é Uma Ilusão de Filósofos e de Loucos”, Grande Prémio de
Poesia da UEA, 2005, “Surreambulando”, contos, UEA, 2007, e “Forno
Feminino”, poesia, Kilombelombe, 2009.
Vida Cultural - Cada conto refere-se a uma
mulher. São curtas mas grandes estórias de amor. Amores vividos ou
sonhados?
João Tala - As personagens principais dos contos em Rosas &
Munhungo são mulheres distintas que vivem diversas situações, ou são
reconhecidas num cenário do pós-guerra imediato. Um traço comum entre essas
mulheres é a superação de traumas e outros estados psicológicos daí
decorrentes, pelo amor. A característica estilística tem uma grande carga
onírica onde o real vivido se revê na composição do sonho.
VC - O título "Rosas & Munhungo" sugere amor e
boemia. Quer comentar?
JT - Rosas, como sendo flores, é simbologia feminina, portanto, associada à
mulher. Essas personagens, a maioria delas, adaptaram-se a ambientes que lhes
eram hostis, ou então a carência cede-lhes o argumento para “ir à rua”. Daí a
expressão kimbundo munhungo que é sinónimo de libertinagem, num sentido mais
ousado da boemia.
VC - A proveniência médica do autor está muito
presente pelo uso notório de termos do jargão médico. Este uso é propositado ou
decorre, digamos, de deformação profissional?
JT - Deformação profissional e porque a personagem representa gente. A
essência da medicina são as pessoas.
VC - No estrito sentido do texto pressentem-se
algumas ressonâncias intertextuais que fazem lembrar o argentino Jorge Luis
Borges, o moçambicano Mia Couto, o angolano Boaventura Cardoso e mais
remotamente o também angolano Luandino Vieira. Assume essas influências?
JT - Leio muitos escritores. Mas, no interesse da minha escrita, são os
latino-americanos que mais me inspiram. Começou, esse interesse, com a leitura
da colecção “Vozes da América Latina” que o nosso INALD dava à estampa nos
primórdios de 80 do século passado, principalmente quando li “Pedro Páramo”, de
Juan Rulfo. Seguiram-se depois “O Trovão entre Folhas”, de Roa Bastos, os
livros de Gabriel Garcia Marques, entre outros. Do Boaventura Cardoso
fascinou-me mais “A Morte do Velho Kipacaça”. Já Luandino Vieira e Mia Couto,
salvas as diferenças, parecem enquadrados dentro da mesma dinâmica de
reinvenção que a mim fascina, mas não creio que perceba na minha escrita esse
modo de conceber o texto. Borges é uma leitura mais recente.
VC - Desde “A Forma dos Desejos I” a mulher tem um lugar muito especial nas suas obras. É seu propósito constante homenagear a mulher? As mulheres tiveram ou têm um papel determinante na sua vida?
JT - Esclarecer sobre isto seria mais do domínio da
psicanálise, já que é quase uma constante também na minha poesia.
Evidentemente, não vou passar o filme da minha infância e flagrar o papel delas
no meu “esquecimento”. Fica para depois.
VC - O contar recorrente de estórias e histórias humanas do tempo da guerra faz parte dos seus livros? Acredita que isso faz falta à reconciliação nacional?
JT - Não o faço pela reconciliação. Faço-o pelo hábito
de contar. O militar que conte os cartuchos e o que ainda resta para esmagar.
Eu conto os meus mortos, revejo as cicatrizes, teço sonhos, amo e amargo-me.
Não fui voluntário quando um dia me cangaram para a tropa onde eu conviviria
mais de perto com a guerra. Isso assim, é também matéria para poesia. Escrevo
sobre aquilo que vivi e o que me está mais próximo é a guerra. Se analisar bem,
saberá que só falta aos políticos reconciliarem-se e deixarem de arrastar os
militantes dos partidos nas suas paranóias. De resto, nem a Bíblia
reconciliaria. Por exemplo, não acredito que o malanjino não se dê bem com um
bieno ou que um bakongo seja inimigo de um umbundu. Só entre militantes de uns
e de outros é que se destilam ódios. É maka deles, os políticos.
VC - Sendo um dos autores mais premiados no país, a sua obra não deveria ter uma maior divulgação em Angola e no estrangeiro?JT - Para tal, falta ao João Tala a cunha. Dizem que isso se faz com a imprensa e com agregação a grupos privilegiados. São coisas de acontecer.
VC - O que o faz escrever? O que o move enquanto escritor?
JT - A leitura. Eu leio mais do que escrevo e isso me
inspira, insufla no meu cérebro imagens que persigo no acto da escrita. Depois
há o hábito de contar, há a beleza da poesia.
VC - Na qualidade de poeta, que avaliação faz do legado poético de Agostinho Neto?
JT - Posta a pergunta em termos de “legado” fica
difícil responder. Agostinho Neto concebeu belas criações poéticas, com um
simbolismo que se remetia aos conteúdos da sua época, com plena satisfação
estética. No seu tempo o neo-realismo fazia escola com preocupações que tinham
no centro a vida simples dos homens mais simples. E no seu caso, a sua terra
então colonizada e oprimida, estava no centro das suas inquietações.
VC - A literatura angolana está robusta? Vê nela sinais de renovação?
JT - A geração à qual pertenço, iniciou nos anos 80
uma movimentação que daria em fartos acontecimentos literários. Essa inspiração
colectivista, depois que o tempo fez a sua natural selecção, permite hoje
distinguir a maturidade dos que jamais se despojaram do interesse pelo estudo e
trabalho. Sim, essa literatura está mais robusta. Quanto aos sintomas de
renovação ou inovação costumam estar mais associados ao desempenho universal da
literatura. Somos apenas peças dessa grande engrenagem, cada um contribuindo
para o produto final. Só o génio é outra coisa.
http://jornaldeangola.sapo.ao/17/0/conto_os_meus_mortos_e_revejo_as_cicatrizes
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Patissa, é muito bom ler seu blog.
Que entrevista esclarecedora, dá para perceber o escritor que também é um cavalheiro.
Gostei muito.
E você está de parabéns por divulgar essa África tão culta e nobre.
Bjos.
Obrigado, Lita, cara amiga. O mérito é para o Jornal de Angola, dona da matéria que este Blog subscreve. Bjs
Muito boa a entrevista de Tala a Isaquiel Cori. O erotismo exacerbado - vide Forno Feminino e outros livros - é uma das marcas da literatura deste autor, assim como as vivências do triste passado de guerra e as implicações no presente, algo que o autor vem realizando com grande desenvoltura na prosa e bom conseguimento estético nos anteriores "Dias e Tumultos" e "Surreambulando". Ainda não li "Rosas e Munhungo" e estou ávido para conhecer essa nova investida de Tala pelo gênero conto.
Considero João Tala um dos mais consistentes de sua geração e é um autor que merece atravessar as fronteiras e ter maior inserção em outras paragens. Por isso, fiquei feliz quando fizemos na Kitabu - Livraria Negra o lançamento de "Forno Feminino" aqui no Rio de Janeiro.
Parabéns por este espaço, Gociante!
Meu grande abraço,
Ricardo Riso
Obrigado eu, caro Riso, por este carinho que partilhamos por João Tala. De facto, Isaquiel Cori faz um bom contributo. Muito grato também pelas visitas suas aqui no Angodebates, Riso. Um abraço de Benguela
Muito interessante esta entrevista a Joäo Tala. Gostei da delicadeza do tom das perguntas e respostas.
Parabéns pelo Blog com muito nïvel e boa continuaçäo!
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