sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Crónica: Luanda, diversidade radiofónica e as bocas do povo


A sala de desembarque do aeroporto, aos poucos, vai ficando agitada. Lá fora o sol esforça-se a desafiar as nuvens, mas em vão. Quando a noite decide chegar, não há quem a faça voltar atrás.

Um cheiro incómodo impera na sala (como que a peixe semi-estragado no frigorífico), mas pouca diferença faz para os passageiros, aliás, tudo o que se quer é pegar na bagagem e sair... para enfrentar o engarrafamento e a "rabugice" social luandenses.

Enquanto o tapete rolante não traz a bagagem, um ou outro "pax" sai da sala por uns instantes para "beijar" o cigarro, e logo à saída depara-se com os pregões desencontrados dos taxistas (até porque nem todos têm familiares com carro e disponíveis para os virem recolher).

E parecia não ser um dia de sorte para os taxistas, que mostravam já comportamentos algo inconvenientes, impacientados talvez pelo receio de darem com o fracasso… justamente no último voo do dia. É sexta-feira e, convenhamos, faz bem a todo o mundo levantar da cama, na manhã de sábado, com alguns trocos no bolso.

Minha companheira de viagem e eu tivemos a sorte de não despachar bagagem, não dependendo por isso do tapete rolante. Restava-nos aguardar pela boleia dos anfitriões, queimando o tempo com aguçada observação a pequenos eventos à nossa volta (em Luanda tudo é evento, tal é a imprevisibilidade com que os mais bizarros fenómenos ocorrem).

Às tantas, sai pela porta uma moça acompanhada de duas crianças. Primeiro, ela “liga” o seu cigarro e, seguidamente, pega no telemóvel e liga para avisar que já chegou (em Luanda, nunca é demais pressionar sempre). Nervosa, ou se calhar nem por isso, atira a “biata” ao chão, acicatando a reprovação dos taxistas:
– Ó moça, é assim que suja a cidade?! Apanha lá o cigarro, pa!, condenava um.
– Essa bodega eu digo não, essa bodega eu digo não!, dizia outro, com rapidez típica de hip hop.
– Apanha lá isso, pá! Isso no tempo do meu marechal… isso no tempo do meu general..., acrescentava o terceiro em tom de nostalgia pouco natural, deixando inferir que citava alguém.

Que linguagem estariam a usar, seria de ku-duro? Eis que, num breve bate-papo, sou esclarecido de que imitavam um radialista (Jojó) do programa “Ndjando” que passaria “amanhã, 9h30, na Despertar [com ligação à Unita]”. Comovido pela campanha, acordei ávido a escutar (com ouvidos de aprender) o espaço, que “roubou” o nome a uma dança tradicional da etnia Ovimbundu. Contra o que imaginava, não era programa cultural, mas de uma linha com contundente crítica social, segundo o apresentador, apresentado factos do quotidiano com sátira social e humor à mistura. Custou-me definir o género jornalístico, é verdade, de tão “híbrido” que é.

Como estudante de linguística, estimula-me sempre estar em Luanda por causa da multiplicação de fenómenos no linguajar popular. Já no outro dia, ouvi um taxista de Hiace a dizer que “o carro do outro andou a ngongar [de ngongo=sofrer] cinco dias na polícia”, e que certo polícia já lhe “poeirou” duas vezes, pelo que já “num [não] queria confiança”.

E já como radialista autodidacta, digo que, de facto, não há nada melhor que estar em Luanda para sondar a diversidade/discrepância radiofónica angolana, numa cidade com mais de oito estações, sendo pelo menos quatro rádios privadas (Ecclesia, Despertar, LAC, Mais).

Gociante Patissa, Novembro 2009
Share:

3 Deixe o seu comentário:

Dulce Braga disse...

Bela cronica!:)
Bjs

kanuthya disse...

Luanda é um fantástico laboratório de sociolinguística e felizmente brindas-nos com tuas descobertas :)

Unknown disse...

Obrigado, Dulce pelo amparo.Sei que te devo um endereço postal para o livro "Sabor de Maboque"... espera só mais um pouco, que dentro de um mês terei, espero só que não esgote o book. Tenho acompanhado pelo teu blog (e parabenizo-te, desde já pelo) teu jeito com marketing.

À Kanuthya, outro abraço. Seria de facto "ngongar" não contar com a tua amizade...

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas