domingo, 21 de janeiro de 2024

O MARKETING É UMA MENTIRA (crónica de hoje nas páginas do Jornal de Angola, coluna Carta de Lisboa


 Crónica | O MARKETING É UMA MENTIRA

 

O que vai querer para sobremesa? Pergunta-me o homem da facturação na copa do Museu Gulbenkian. Uma fruta. Se não houver melão, fico com o mamão, se faz favor. PAPAIA. Rectifica prontamente o homem, entre o simpático e o professoral. É PAPAIA, reforça suavemente enérgico, não vá outro cliente na fila confundir os termos, cuja diferença, se alguma, para já não enuncia. Agradeço-lhe e sorrio maroto, como quem nunca se engasgou ao degustar mamão contra papaia ou ananás contra abacaxi, diga-se.

 

E como até vivemos a era da lucidez de auto-ajudas, fico a conjecturar que raio de gatilho faria o substantivo mamão espoletar no rol de memórias, quiçá dos mais malandros e fisiológicos superlativos na cabeça do homem. Mas deixemos isso para lá, farto que anda o mundo de nos provar o quão útil é a produção em série de coaches e motivacionais e etc. Tanta sabedoria a granel, e enquanto isso nada contém as guerras, como se vê. 

 

A fila da copa no museu tem sempre mais olhos que barriga no que respeita à sua cadência. Turistas e nómadas digitais fazem a paisagem. De escritório às costas que atende pelo nome de mochila e internet e fome no pico, aguardo a vez. Conto pelos dedos da mão, ou diria antes pelos dentes da minha boca, o tempo de espera, que por sua vez não cabe na métrica. Aqui o tempo é só isso mesmo (não chega a ser dinheiro, pelo menos não como proveito), não se detém na boa-vontade do pessoal de serviço, que tem de se desdobrar com interpretações e traduções, tanto babel circulando na metrópole, os que ficam e os que nunca mais voltamos a ver. A única certeza dos encontros é a data.

 

A propósito, enfio aqui um paralelo com algo que me chamou atenção há dias na condição de telespectador e estudioso de ciências da comunicação, simpatizante da sociologia e de fichas técnicas. Estava eu de óculos progressivos montados e tudo à espera da ficha técnica de um programa da RTP, quando dou por mim quase tonto e frustrado. Tão veloz  era o desfile da ficha técnica que não se conseguia mesmo decifrar a sua composição. Os nomes estavam lá, porém mais valia o oposto disso. A única coisa de nítida, porque a última, era 2023. Se não é para decifrar os nomes, o que justifica então que lá estejam? 

 

Esse pormenor aparentemente insignificante, digo aparentemente atendendo que em teoria tudo comunica, parece dizer muito sobre o rumo para o qual as relações interpessoais caminham na era digital, muito dada a pressas e ao impessoal. Temos então um modelo cada vez mais instrumental de contar histórias. Em Angola mesmo intrigava-me ouvir peças jornalísticas de rádio e televisão, aquele critério editorial de omitir o nome do interlocutor sem justificação, ou narrações do tipo este cidadão fez isto e aquilo, reduzindo a humanidade a uma estrutura fisionómica de anonimato imposto.

 

Aos corredores da Gulbenkian volto inúmeras vezes, tal é a variedade de atractivos da sua pauta e paisagem, da biblioteca aos palcos. O verão chega a ser a época mais voltada ao pop juvenil, com uma programação que se esforça a mitigar as barreiras que atravessam a história de Portugal na sua relação com as colónias. Contudo, o tronco principal da acção cultural, este, é voltado à faixa mais vivida, a da música clássica. 

 

É um microcosmos de uma geração que faz dali um refúgio existencial, como quem lança o anzol às profundidades do oceano à pesca de motivos. Esse motivo por vezes pode ser só mesmo o aconchego furtivo do ar condicionado, quando se torna insuportável o interior da maioria de moradias antigas, ao longo dos quatro meses de verão.

 

Nas poltronas rubras do corredor do bengaleiro monto o arsenal de nómada digital, o iPad devidamente ligado à net de dados, auscultadores para reuniões virtuais e um punhado de livros (de quando em vez furtamos horas ao patrão para os atrasados académicos).

 

Por mim passam calados, olhar desviado com frequência reincidente, homens e mulheres, de jovens a adultos. Chegam ao fim do corredor e vêm-se obrigados a retornar, um tanto aflitos. Eu sei o que procuram. Sei também que não o acharão sem perguntar, visto que a arquitectura à meia-luz não facilita achar a sinaléctica. Sem saudar, perguntam onde fica a casa e eu indico, ora em português, ora em inglês. O WC é mesmo ali, é só virar à direita, ao que respondem obrigado. A entrada do bengaleiro é também a das casas de banho. Aliviam-se e vão à sua vida, a saudação não é mandatória, aliás, nem nos vimos.

 

Uma dessas almas traz consigo caixa de papelão a tira-colo e um daqueles sacos de panos caqui, que na banda até gostamos também de fingir que utilizamos, a pessoa até recebe em eventos e quê e tal para acabarem atirados, nem já para saco de pão. A mulher, 50 e poucos, cumpre o roteiro mudo, batido, mas o retorno é certo. Cumprida a escala técnica de atender a natureza, breve, procura saber a agenda. Peço uns segundos para espreitar o site. Cabe a mim fazê-lo, que ela usa telefone de botões. São 15h. De espectáculo mais próximo, só mesmo às 19h. Não dá, o meu último autocarro sai às 18h30.

 

Moro do outro lado do rio, acrescenta a mulher cuja jornada a Lisboa nesse dia se resumia a dois grandes ponderáveis. Um era tratar da saúde do seu bicho de estimação, um gato, motivo da recolha das caixas de papelão. O outro passava por captar um melhor ângulo da exposição que visitara dias antes. Mas não há nada a fazer, a exposição já ali não se encontrava patente. Desenrola-se o papo de dois aficcionados por fotografia feita com máquinas fotográficas DSLR, aquele deleite de ajustar os parâmetros de abertura, velocidade e sensibilidade do sensor, coisa que o digital nem sempre sabe.

 

É mesmo! O digital tende a acelerar resultados, não dando a dominar os processos. É o que se vê, um mundo cada vez mais preso aos aplicativos e frio para coisas que muito acrescentam ao contacto humano, isso somos nós no papo conspirativo. Ela indaga sobre o que me traz a Portugal, ao que lhe respondo curso de mestrado. Ah sim? Sim. A questão é que me licenciei em linguística por ser o que mais se aproximava à comunicação e à literatura, na ausência da oferta em jornalismo na província de onde venho.

 

Conta-me ela que em jovem cultivou uma fulgurante paixão pelo jornalismo e exerceu, até perceber que afinal gostava de coisas menos dependentes dos interesses dos patrões. Trocaria os microfones pela sala de aulas, multiplicando o saber a bordo da filosofia. Não podia, por isso mesmo, deixar de abominar o assalto ao bom-senso por derivas populistas. Pior ainda é a onda de supressão de cursos tão úteis à formação do pensamento crítico como as filosofias e as sociologias, já sem falar de sistemas de aceleração que mutilam.

 

Sendo formado em ciências da educação, digo-lhe quão sintonizado à apreensão dela estou. E conversa vai, conversa vem, menciono a má notícia da descontinuação do curso de sociologia numa das unidades orgânicas da maior universidade estatal do meu país, precisamente por registar fraca adesão de candidatos, em se tratando de regime pós-laboral que opera na base da propina para a remuneração do corpo docente.

 

Como pode o mundo crer que vá caminhar saudável e consistente, dar sequência ao legado cultural e conquistas até aqui somadas, com a aposta em programas e currículos que semeiam o imediatismo e a superficialidade? Questões de retórica que prosseguem até a minha interlocutora atirar: E essa coisa do marketing, já viu como consome a juventude?! É só vender, vender. Eu não gosto nada. O marketing é uma mentira!!!

 

De facto, como estudante da coisa devo concordar em parte. O marketing chega a ser uma rampa de ilusões e egos esteticamente bem vendidos. Oh, mas disseste (posso tratar-lhe por tu? – Sim, claro) que estavas em ciências da comunicação. E estou, escolhi comunicação, marketing e publicidade porque trabalho no ramo. No entanto a minha escola é, como disse, ligada à educação, artes e desenvolvimento comunitário pelas ONG.

 

Gosto de causas sociais, diz a senhora, que é activista pelo bem-estar dos animais. Passa a ser este o tema, a ecologia e vida saudável. Mas o tempo, o mesmo que um dia considerei não ter pernas, pois seriam curtas ou longas demais, fazia das suas. A senhora abre a bolsa para localizar o bloco de notas onde tem o horário dos autocarros intermunicipais. O aplicativo não torna a coisa mais prática? Provoco eu. Livre-me dos aplicativos, por amor de Deus!, retruca. Não quero ser comandada por telefones, utilizo apenas para o essencial, fazer chamadas e enviar SMS, e mesmo assim já é muito. 

 

Feitas as despedidas, solicitei-lhe um ponto de ordem para saber como se chamava, o que revelou com ares desprevenidos, como se fosse natural conversarmos mais de uma hora, trocar impressões pessoais sobre o mundo que queremos mais humano... e acabar tudo numa ficha técnica sem nomes. Bem, se calhar bastaria a data. Mas sou angolano.  

 

Gociante Patissa

Lisboa, 01 Janeiro 2024

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