sábado, 19 de março de 2011

Crónica: Dai-nos, que é hora, lixívia para a língua dos nossos oradores

As poucas árvores relativamente mais próximas do buraco, duas ou três, davam guarida a uma considerável parte de gente, homens, mulheres e grávidas rendidos ao poder da sombra perante um sol banhado de calor e humidade. Havia mesmo uns que, ainda assim, levavam a mão à testa em jeito de pala. Mas, como é típico de actos fúnebres, há sempre aqueles mais directamente afectados, ou ao menos tolerantes ao clima, aqui incluso o leitor da biografia.

11h00 da manhã. Sábado. Cemitério da Catumbela. Na tábua, vítima de doença, a Roséria, prima-irmã de primos-irmãos meus da parte de pai. Uma doença que, de tão apressada, mais não precisou do que meia semana para retirá-la quieta, logo ela que vinha perseverando no comércio por conta própria. Teria partido para a China na próxima segunda-feira, se…

O elogio fúnebre não foi longo nem curto, teve o tempo, as pausas e ênfases suficientes. Também, verdade seja dita, andava a plateia espalhada pelas árvores e arbustos do campo santo, como já dito, em busca de sombra. Para não dar muitas voltas, diria que quase todo o mundo conhecia a mana Roséria, e pouco ou nada de extraordinário acrescentaria a narração às memórias do convívio com ela.

A aparente obviedade, entretanto, se quebra quando um homem alto, bem nutrido, cabelo em escovinha, camisa preta e gravata começou a falar, sem que conseguíssemos notar, de onde nos acoitávamos, se lhe fora concedida a palavra. Deu-se a identificar como obreiro da Igreja Universal do Reino de Deus, quer pelo sotaque mecânico abrasileirado, quer pela tendência do verbo. Os cochichos não demoraram, pois não foi vista no óbito a IURD, durante as duas noites que antecederam o enterro, para cânticos, entre outras coisas típicas nestas ocasiões.

E o orador, que suava o mesmo amoníaco de gente honesta, teimava em desumanizar a morte, atribuindo-lhe uma causalidade baseada na intriga. “Se calhar, entre nós há pessoas que sempre desejaram a morte da nossa irmã”, vomitou. Depois disse qualquer coisa como Deus dá descanso às suas criaturas invejadas cá na Terra. Já não é o criador da vida, e como tal da morte, mas um ser que só dá o bem (de preferência material). A morte, como quis fazer crer, não é natural mas uma consequência da maldade dos homens para com outros, o olho grande e etc. Ora, e aqui uma dúvida, se o mal já está identificado, e tendo em conta que o homem é insignificante perante Deus, por que não desafiar este último a erradicar a inveja?

Era mais fácil esperar por palavras de consolo e esperança (no que também não seria o primeiro nem o último) do que justificações e conjecturas que podem, em meios menos escolarizados, incitar rancores desnecessários. Não nos esqueçamos que o africano, Bantu para não arriscar tanto na generalização, tem uma dificuldade estrutural de aceitar a morte, pelo que recorre à mitologia para a explicar. Até porque, de tão complexas que são as relações humanas, não faltarão coincidências que poderiam ser mais ou menos relacionadas com a especulação do obreiro. Daí à justiça por mão própria não é longo o caminho.

Qualquer dia, na senda da Universal e Mundial, virá alguém ensinar que a fecundação nunca foi do sémen com o ovário mas apenas fruto do milagre. E de tão polissémica a bíblia, até eles alertam sobre o Mateus 24:24.

Para terminar, embora tenha parado de orar há já um bom tempo, volto a fazê-lo hoje: Senhor, dai-nos, que é hora, lixívia para a língua dos nossos oradores.

Gociante Patissa, 19 Março 2011
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4 Deixe o seu comentário:

Anónimo disse...

Amén!
*
K.

KImdaMagna disse...

Caro Patissa!
É caso para dizer lixiavemos não só a língua mas tb e principalmente as mentes desta gente.

Estive em Benguela à dois dias e fiquei agradavelmente surpreendido com a limpeza e ordem que a cidade apresenta, pelo menos em comparaçºao com o Sumbe. Agradeço enviar seu telemóvel para quando regressar a Benguela poder contatá-lo. Faço questão de me encontrar com VC.

Abraço
KimdaMagna

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Oi, KImdaMagna, como sempre sou grato ao seu contributo. Bom saber que esteve em Benguela e que ficou com boa impressão. Só mesmo a chuva, quando decide cair, é que dixa as entranhas à vista, já que a drenagem é ainda um desafio. MAndo para teu e-mail meu contacto, mas sem algo falha, sempre me podes mandar um emailzito a alertar e eu fico pronto. Um abraço

Maurício de Souza Lino disse...

Caríssimo, saudações fraternas em Cristo!
Sou do sudeste brasileiro e me alegro muito ao fazer este comentário.
Lí seu post e fiquei surpreso. Certamente, falta discernimento, eloquência e muita sabedoria para uma boa oratória. É lamentável! Contamos com o sangue de Jesus, a melhor lixívia para alvejar não somente a língua, mas também o coração de alguns oradores.
Parabéns pela crônica e tomo a liberdade de copiá-la para meu blog. Saudações!

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