sábado, 6 de outubro de 2018

A Voz do Olho: 03 | CURAR VERGONHAS AO BANCO DE URGÊNCIA


O Hospital Geral de Benguela (HGB) conseguiu curar-se, finalmente e da melhor maneira que se possa imaginar, de uma vergonha, talvez a maior, que lhe faziam publicidade, ao longo de décadas, à falta de visão e pragmatismo. Foi o que constatei anteontem no banco de urgência aonde fui prestar apoio a um familiar (no português europeu diriam tio-avô, justaposição que no entanto inexiste na genealogia umbundu. Meu avô, e ponto final).

Aos olhos do utente, na verdade só problemas gravitam em torno do dia-a-dia do tradicional estabelecimento de saúde poeticamente mais bem localizado na velha cidade. Noticiários, agenda pública, clamores de bordo de kupapata. Inevitável faz-se aquela impressão de que o HGB, com todo o mérito ao que é bem feito, acaba se resumido numa palavra. Carência. Vamos lá ver se caprichamos no linguajar. Carência de fármacos, de seringas, de agulhas, de borboleta para canalização intravenosa, de um pavilhão com as mordomias do internacional, mas acessível ao salário mínimo nacional. Enfim, carências.

E por Benguela passaram pelo menos três governadores (Rangel, Neto, Anjos), tal como passaram outros nomes pela hierarquia mais abaixo, entenda-se Direcção Provincial de Saúde e Direcção Geral do HGB. Resolver o problema é que não eram elas! Olhando agora para a solução aplicada simples, cómoda, criativa e digna custa imaginar como levou tanto tempo para uma tão iluminada ideia dar o flash ao sonho de alguém (não sei quanto custou a obra, mas não vamos por aí). Em causa, a humanização, não apenas do doente, mas também do seu acompanhante, doseando de maneira mais assertiva.

Sacrificar poucos metros quadrados de canteiro para erigir alpendre com luz, WC e água corrente foi santo remédio. Pôs fim a um cenário que tinha tanto de intrigante como de perigoso. Refiro-me à concentração de pessoas, tendas e trouxas na berma de uma estrada nacional, adjacente ao banco de urgência, sujeitas a atropelamentos e a contraírem doenças tropicais como a malária, precisamente quando movidas a estarem ali em prontidão para a saúde de seus entes internados. Do mal ao pior, curta costuma ser a distância. De tal sorte que, sendo as necessidades fisiológicas ditadoras do jeito que são, e não funcionando mudanças na ausência de alternativas, a serventia do banco de urgência fedia horrivelmente de urina e fezes depositadas, à socapa, ao pé das poucas árvores.

Tão caro me é o tema que surge no conto «Rua das Empregadas», um dos que compõem o livro «O Homem que Plantava Aves», que chega ao leitor angolano muito brevemente, como ilustra o trecho que se segue:

«O ex-delegado tinha dificuldade em dosificar em si a sensibilidade de enfermeiro e o punho militar. Arguia que a morada permanente ao relento, ao mesmo tempo que destoava o código de postura e a estética de uma cidade acolhedora, representava em si outro risco, no caso à saúde. Desavisado foi-lhe todavia anunciar o poder do chicote para eliminar aglomerados na berma da estrada. Só que o africano, pelo menos por aquilo que se sabe do Bantu, não conhece colchão mais confortável do que o sacrifício de estar perto do seu ente, morto ou vivo. E isto transcende o poder administrativo de pendor ocidental. E 1975 é bebé.»

Termina-se esta terceira crónica da série A Voz do Olho com um «assim, sim!», ó HGB.

Gociante Patissa | Benguela, 05.10.2018 | www.angodebates.blogspot.com
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