quarta-feira, 21 de março de 2018

Crónica | E quem é que autoriza morrer?

Foto: Sapo Viajar Angola
Um dia carregado de emoções. Estivemos esta tarde no cemitério do Luongo, do município da Catumbela, para deixar ficar a mana Salomé naquela que é a partir de hoje a sua última morada, para qual foi empurrada de forma prematura pelo extremar da violência doméstica, como anteontem referimos.

Antiga moradora do bairro da Santa Cruz (antes município do Lobito, hoje da Catumbela), Salomé foi assassinada no passado dia 18 pelo namorado com quem mantinha uma relação de pouco menos de seis meses. O monstro, como bem referiu o leitor do elogio fúnebre, não levou sequer em conta a "ressaca" do 44.º aniversário por ela recém-completado nem mesmo a natureza terna que o mês dedicado à mulher implica. Indignação, revolta, sugestões amiúde de pena de morte e perguntas sem respostas marcaram o ambiente.

Porque é que não morreu pelo menos de plasmódio, de ataque cardíaco? Como conceber que um ser humano foi capaz de agredir a namorada com a cobardia de quem se serve de uma catana e investe fatalmente, ao ponto de a deixar não só sem vida mas também fisicamente irreconhecível? E os órfãos? Haverá anos de cadeia que preencham o vazio deixado? E ver a Mimi e a Anica, irmãs mais novas da malograda, com o retrato emoldurado, aos prantos, exigiu uma enorme ginástica para conter lágrimas, pelo menos para quem conseguiu segurar este lado do abanão à sensibilidade.

O bairro da Santa Cruz fica assim um pouco mais empobrecido por conta desta partida de uma das mais emblemáticas beldades. A mim particularmente, é-me sempre difícil regressar ao bairro que me fez homem, de onde parto no fim do dia com aquela sensação de dívida não paga, ainda mais em ambientes de funeral, na medida em que nos vemos rodeados de pessoas que nos viram crescer e que nos merecem toda a atenção, mas que o momento não é propício para distribuir saudações.

Custa sempre lidar com a sensação de termos visto na multidão alguém que em certa época marcou a nossa vida (infância, adolescência, maturidade) e entretanto, uma vez imprópria a circunstância, não nos podermos entregar à "roda-viva" de apertos de mãos, beijinhos e matar saudades. Um com quem jogamos à bola, outro com quem fomos à escola, à igreja, um terceiro com quem criamos a associação comunitária, e por aí vai.

À margem do cenário, e não distante dele, tocou-me profundamente a manifestação de emoção de uma mana lá da banda, contemporânea da falecida, daquelas com o direito mais do que adquirido de tratar os da minha geração por eternos putos, ao dizer, mais palavras, menos palavras, no momento do reencontro, o seguinte: "Vieram acompanhar a Salomé? Então sinto-me amparada. Assim sei que no meu funeral vocês também virão, que posso contar convosco". Mas, ó mana, quem é que te vai autorizar morrer?!

Parecia brincadeira, mesmo assim ficou a inquietação. Em se tratando de alguém cujo estado de saúde vem flutuando ultimamente, as palavras roçaram a despedida, a qual desde já nos recusamos a aceitar. E quem é que autoriza? A mana não pode morrer, cuidamos de advertir. Melhor, não deve. Não se atreva! Ainda era só isso. Obrigado

Gociante Patissa, Santa-Cruz, Lobito, 21.03.2018 | www.angodebates.blogspot.com  
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