quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Opinião | Sobre o feitiço, uma agenda informativa inconsequente?

Imagem: Berimbau Notícias (Brasil).
Acompanhei com redobrado desgosto no noticiário da Rádio Mais do Lobito uma peça sobre o intrigante tema da feitiçaria, sobretudo pela ligeireza do ângulo de abordagem. Na referida matéria, apresentada com um implícito tom que oscila entre o criminal e a punitiva moral cristã, ouvia-se uma senhora que alegadamente confessava ser responsável pela morte de três filhos seus por meio de um feitiço que recebera de um tio seu.

Pelo sotaque, a acusada é da etnia Cisanji, do município do Bocoio. Tal feitiço, relatado na voz triunfalista do locutor e mais tarde reforçado pela suposta bruxa confessa, seria também responsável pela atracção do êxito na produção agrícola só para ela, enquanto para as demais lavras vizinhas o ano produtivo foi de desgraça. No trecho que acompanhei não se ouvem sociólogos nem psicólogos nem historiadores nem antropólogos nem autoridades tradicionais. A peça termina com a senhora a dizer mais ou menos o seguinte:

«Sempre que os familiares vão ao kimbanda para o trabalho de adivinha, o meu nome é que sai visado. Então, eu disse que como sempre é a mim que acusam de estar a causar o mal à minha própria família, então confesso e entrego o tal feitiço.»

Será a confissão substância suficiente para a pauta do tipo “facto do dia”? Enfim, é de uma superficialidade inquietante, na medida em que não se consegue vislumbrar o papel da rádio no day after da “notícia”. Voltará ela ao mesmo meio social após esta difusão “bombástica”? Em caso de retaliação violenta, a quem iremos cobrar responsabilidades? Seria mesmo um assunto para tratar na comunicação social, ademais sem ser numa perspectiva de interdisciplinaridade (congregação de vários saberes para uma melhor compreensão do quadro psicossocial dos agentes envolvidos na problemática)?

A Rádio Mais embarcou numa “especialidade” da editoria Umbundu da Rádio Benguela, onde a exposição de alegados feiticeiros acaba, não alimentando a coesão social, mas o sensacionalismo efémero. Há meses, uma senhora do Cubal teria assumido autoria da inflamação da barriga do marido (num quadro de ascite), alegadamente por ter preparado o feijão com a água antes usada para lavar as partes íntimas dela para o tornar mais manso. E lá se ouvia o locutor justiceiro a puxar as orelhas pelo microfone, assumindo como suas as dores de um “crime” que para já não testemunhou.

E não é só em Benguela. Noto uma tendência inconsequente, quase exótica, de abordar o assunto da feitiçaria nas agendas informativas de algumas rádios, sempre no prisma de cidadãos que confessam autoria de danos (algumas vezes irreparáveis) na vida de outrem. A impressão que fica é de caminharmos para um exercício jornalístico social kamikaze.

Há dias recebi o áudio de uma das rádios de Luanda a reportar uma criança de doze anos que se dizia, à semelhança de outras da sua rede, utente do poder sobrenatural de transformar qualquer um em qualquer coisa. Gabava-se de ter causado deficiência a um agente da polícia por alegadamente não lhe pagar a dívida do negócio. Teria recebido o feitiço de uma “langa” (cidadã oriunda do Congo Democrático), sua sequestradora.  

Faz imensa falta nas redacções a figura do editor de cultura, aquele profissional dotado de vasta cultura geral e compreensão endógena da idiossincrasia do grupo etnolinguístico predominante na região. Informar por informar não forma. Ainda era só isso. Obrigado.

Gociante Patissa | Benguela, 8 Fevereiro 2018 | www.angodebates.blogspot.com
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