sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Em linhas tortas (31)

Os problemas sociais de Angola, de tão imensos, propiciam um panorama amorfo de abordagem. Ultimamente invade a sensibilidade um protesto caracterizado pela partilha de fotografias dramáticas com simulacro de morte, corpos entalados por objectos de peso. Tão violentas como o peso da vida real de muitos angolanos. De crises financeiras, não somos propriamente virgens, bastando recordar a de 1986 (que inaugurou a venda de água aos copos no mercado informal no litoral de Benguela). Houve ainda a crise humanitária pós-eleitoral, de 1993 a 1995 que, dentre outras cicatrizes, teve a proeza de encher as avenidas de cadáveres quais folhas caídas de uma primavera (que o nosso clima não prevê). Fala-se de uma outra por volta de 1998, tendo as três em comum o contexto da atroz guerra civil. Daí que uma comparação entre aquelas e a que se instalou no ano de 2015 seja complexa, sob o prisma de como o solavanco macroeconómico se reflecte no dia-a-dia do cidadão. O contexto actual é bem mais favorável. De 2006 a 2014 houve crescimento notório na oferta de empregos na função pública e no sector privado. Na falta de um enquadramento mais técnico, salta à vista que a actual crise tem efeito maior na estabilidade dos cidadãos em virtude de dois factores: o acesso à informação e a suspensão do acesso às divisas. Na era das redes sociais, estamos expostos a um turbilhão de informações (a oficial, a oficiosa e a falsa) passível de tolher o discernimento. Se a situação do país exige apertar os cintos e você verifica que de modo transversal se adopta o sacrifício, a estabilidade é consequência natural cognitiva. Mas se volta e meia se é bombardeado com escândalos, descaminho e ostentação… O paradigma já não é o do emissor-receptor mas o do emissor-receptor-emissor. O segundo factor seria o bloqueio no acesso às principais moedas estrangeiras, o Dólar e o Euro, reduzindo à sensação de entulho os rendimentos em Kwanzas, numa sociedade dependente da importação (várias empresas foram à falência e por inerência a extinção de vários postos de trabalho). Fecho este apontamento com a tristeza pela notícia do suicídio de Didalelwa Júnior, filho do antigo governador do Kunene, por alegado inconformismo face à recolha compulsiva de bens do Estado em posse da família na sequência da morte do pai. Na minha qualidade de filho de antigo dirigente e governante (na época em que era missão, não se acumulava riqueza), sei de cor a sensação de abandono social dos órfãos por parte dos antigos camaradas. Mas se fosse a optar pelo suicídio, talvez não sobrasse um único dos meus irmãos. Ainda era só isso. Obrigado. 

Gociante Patissa | Benguela, 23.02.2018 www.angodebates.blogspot.com
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