domingo, 16 de novembro de 2014

Fragmentos do conto A ALMA GÉMEA DO MAR

Titina distancia-se das de sua geração. Doseia com equilíbrio o romântico e o pragmático. Vê-se em suas feições um remoto cruzamento do europeu com o Bantu. As idas ao ginásio são responsáveis pela definição muscular das pernas, o que bem serviria de moeda, se fosse pela sensualidade que ela se quisesse identificar. Nem alta nem baixa, apenas com a altura suficiente para gerar disciplina no serviço e escapar aos estereótipos.
(…)
Mulheres dinâmicas assim só têm um problema, a monotonia. Doente, saía-se terrível. Queixava-se de tudo, até do que ia aos olhos de todo o mundo impecavelmente. O corpo médico andava perto de se fartar de tanto queixume, sim, porque a situação dela até não era nada, se comparada com outros casos. «Boa tarde, senhora, como está a nossa disposição, hoje?». Silêncio. Suspiro dorido. Um olhar à volta da sala em jeito de denúncia. «Como estou, doutor? Como vou estar?», retruca. «É o que espero ouvir da nossa amiga», responde-lhe, sorridente, o profissional. «Está mal, doutor. É uma eternidade presa nesta cama, a pessoa até já sonha com o pior», dramatiza. «Não seja por isso, minha cara, é apenas uma perna engessada, quer dizer, seis dias de cama», minimiza o médico. «Seis dias de cama? Como assim? Ai, e as noites não contam?», rabuja. «Pronto, são seis dias e noites», daria o médico o braço a torcer.

(…)
A ilha de Luanda é um lugar com o poder de aproximar a grandiosidade do mar à imensidão gastronómica de cidade cosmopolita. Numa das esplanadas dali, o churrasco servia de pretexto para celebrar aquele dia bastante descontraído, éramos quatro almas refasteladas em poltronas de junco e esponja. Só a Titina teimava em manter-se de pé. Dois convites tinham sido em vão. Estava bem, dizia, como se quisesse alargar o campo dos alongamentos a que havia sido sujeita no ginásio.

Às tantas, algo capturava-nos os sentidos, num silêncio invulgar, que até parecia combinado. Tudo muito rápido a poucos metros, como num filme: dois ilustres desconhecidos saem abraçados do restaurante vidrado, que dá vida às ruinas de uma doca que se esqueceu da idade, passos conforme as ondas algo bravias. O céu, até há pouco cinzento, cai. Ela não corre, ele muito menos. É já fim de tarde. Está frio, incisivo mesmo. Longe do carro, não perto de casa. E beijam-se. Quem se escuda agora é a chuva. O bar tem dessas coisas. E não são poucas a vezes em que a gente volta de lá com algo de algebricamente valioso, dito por gente desconhecida da mesa ao lado.

Gociante Patissa, in «Fátussengóla, O Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas» (pág. 95). GRECIMA. Programa Ler Angola. Luanda, 2014
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