quarta-feira, 23 de abril de 2014

Crónica: QUANTA DISTÂNCIA NOS SEPARA DO QUE NOS FALTA?

O bar perdeu parte de sua graça sem a Edna, a atendedora mais experiente. Cansou-se. Há lá empregadas novas. Alguns clientes vivem a falta de rapidez e domínio dos seus hábitos de consumo. Só mesmo um livro para atenuar a impaciência, ou então ter Internet no telemóvel. Pois é, o móvel anda cada vez mais armado em que «pode tudo».

E por falar no super poder do telemóvel, fomos abordados – mais a mim do que ao colega de serviço com quem fui almoçar – por uma moça que queria ajuda para emprego. Não que lhe faltasse trabalho, mas essencialmente porque, em suas próprias palavras, não aguenta mais. Dentre os vários factores para a ruptura, destacou-se o facto de não ser permitido falar ao telefone durante as oito horas de serviço, de segunda à sexta-feira. Você já imaginou?, indagava, incrédula da sua própria sorte, a rapariga.

Por acaso, não me posso queixar. O meu emprego, longe do gosto e vocação, não proíbe o uso de telemóveis, exceptuando a tácita deontologia nas horas de pico. E de facto, o telemóvel dá para o tudo inenarrável em termos criativos e de comunicação. Só não deixei de sentir um choque – ingénuo, reconheço – ao confirmar como, à velocidade do banal, o telefone do bolso evoluiu para instrumento de escuta. Se antes receávamos que alguém, algures nas telecomunicações, ou contra-inteligência, monitorava a nossa privacidade, hoje basta um simples software compatível ao sistema andróide para gravar telefonemas. Enfim… Se Benguela é a segunda capital (de facto) angolana, e como tal tão exposta à «era digital», o típico citadino com um aguçado «bicho» de se exprimir não escapa à tendência de alistar a comunicação nas altas rubricas do seu orçamento.

E nessa coisa de ir dando entrevistas a este ou àquele órgão de imprensa, onde o pretexto é o livro ou qualquer coisa entre o exercício da cidadania e a arte, cruzamos com perguntas passíveis de dar ignição a introspecções com algo de autobiográfico.

Já falei mais. Em pequeno, na adolescência, diria que falava «muito». Hoje, já me calo mais. Consigo passar dois dias sem falar com ninguém, se entender que preciso disso. Revelei isso mesmo em plena mesa-redonda numa rádio cá de Benguela. Mas ao ouvir a gravação – tenho sempre a preocupação de gravar as bocas que mando, como se diz na gíria jornalística, vai-se lá saber se pela tal «cultura do medo» ou por involuntária vaidade de ouvir a própria voz –, repreendi-me a mim mesmo: ouve lá, isso não é bem verdade. Conseguiria por acaso um vivente do século 21 isolar-se em realista redoma?

Sendo editor de dois blogues (um sobre tradição oral Umbundu e outro generalista), dono de conta no Facebook por manter «higiénica», e com tanto que exige a produção enquanto escritor… não se pode bem dizer que consiga passar dias sem falar. Sou afinal o mesmo activo falador, mas por outras vias. Tenho um bom computador portátil, um telefone top de gama, que permite estar nas redes sociais, enviar e receber e-mails, bastando para o efeito um pouco de saldo ou acesso à Internet sem fios. Há que celebrar: estamos irremediavelmente no século da comunicação! O que mais falta?

Ora, na procura do que falta, mais não somos do que uma conta no Google, Hotmail, Yahoo, Tweeter, facebook, um ponto no GPS, enfim, seres catalogados por satélite.

Gociante Patissa, Benguela, 24 Abril 2014 (Foto de autor desconhecido)
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