sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Crónica: "MAS NÃO ME ENXOTA DE CASA"

Foto de autor desconhecido
Aos 21 anos, o curso de operador de computador levou-me a sair de casa. Corria o ano de 1999, e não era seguro caminhar depois das 20h30, altura em que as aulas terminavam, entre a zona comercial e o bairro Santa Cruz, na cidade do Lobito. Havia rusga para o serviço militar obrigatório, havia a guerra civil no seu pior, havia, obviamente, o risco de assalto.

O horário de serviço ia das 7h00 às 18h00, compreendendo dez horas úteis. No próximo quarto de hora, acontecia a caminhada para o centro de formação. No fim do mês, colhia 120 dólares americanos, metade dos quais cobria o arrendamentoOlhando em reverso, foi um sofrimento que ajudou a amadurecer enquanto jovem em busca do saber e crescimento profissional. Beneficiei também da solidariedade de uma família oriunda do Moxico, em cuja arca conservava meus bens, sem contar as vezes que me ofereceu jantar, com pena da minha intensa rotina.

Da primeira experiência em viver sozinho, carrego o trauma da correcção colectiva que recebi certa vez dos meus vizinhos no terraço de um dos prédios do centro da cidade.

No anexo ligado à minha parede vivia um casal, na faixa dos 35-45 anos, pouca escolaridade, e dado ao excesso de álcool. Seus rostos, curiosamente, nunca fixei. Ele devia dedicar-se a pequenos biscates. Ela devia ser doméstica. Acontece que, pelo menos por mais de duas vezes, ouvi gritos por espancamento. Ele trancava a porta e, pelo que se presumia do som, agarrava a mulher pelo braço a passos acelerados, embatendo violentamente a cabeça dela contra a parede, uma vez, duas, três, enfim, até perder-se a conta. Ela, não sei por que receios, dorida, implorava: "Ai, ai, pode me bater, mas não me enxota só de casa".

Dei por mim a bater-lhes à porta um dia, na vã tentativa de demover o agressor. Para a minha surpresa, outros vizinhos repreenderam em uníssono (um pouco mais ou menos), já que, defendiam, aquele era malandro.

E como toda a força humana tem limites, mesmo quando movida pela impossibilidade de conter a dor física, os gritos da mulher perdiam-se na noite. O silêncio seria, provavelmente, a confirmação do pedido aceite. Ele espancaria ao ponto de matar, se tivesse de ser, conquanto não a mandasse embora de casa. E para a minha terrível impotência, outra sessão viria a caminho, naquela semana, mês, ou ano, mas era certa.

O que me traumatizou foi a proibição velada dos demais vizinhos (entre casados, separados, divorciados, ou reatando) quanto a mover uma palha que fosse em jeito protesto, pois o vizinho, legitimado no seu status de malandro, estava apenas a espancar a sua própria mulher.

No ano seguinte, mudei de bairro. Nunca mais quis saber do casal (nem da postura da plateia).

Gociante Patissa, Lobito Agosto 2013
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"Bocas" do taxista na hora de sacar a factura do taxímetro:

"Essa banda do Onze é fixe; o terreno, as ruas, é melhor que na Graça. Maka só é que tem muitas casas da camada baixa".
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Trocadilhos

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quinta-feira, 29 de agosto de 2013

"Às vezes, gostaria de ser só folhas, poder cair e ser só isso. É que ainda cedo me fiz raízes, e isso cansa. Ter juízo sempre cansa".
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Vendo documentário sobre tráfico de armas em frança via canal odisseia em companhia do Ataíde (4 anos), 29.08.2013

"Esse é bandido?"
"Não. Esse é jornalista."
"Jornalista é quê?"
"Que informa, que avisa os outros."
"Jornalista não rouba?"
"Não. Jornalista fala na rádio, na televisão."
"Jornalista tem documentos?"
"Sim."
"Tio, eu quero ser jornalista."
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PROCURA-SE (pagamento a ser feito quando chegar a idade de reforma) ENCARECIDAMENTE POR UM MÉDICO


... para tratar do raquitismo de um parente meu, muito chegado mesmo aos afectos e de quem sou dependente. Tanto deixou de crescer, como ultimamente até mal me visita, lassidão muscular, creio, pois já não percorre a mesma distância cíclica com a peculiar pontualidade. O meu parente enfermo chama-se salário, vencimento, ou fim do mês, que ultimamente chega literalmente no fim do mês. Mas, será que tem cura? Obrigado.
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quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Há uma semana que o ataíde (4 anos) frequenta "meditações" em casa de um vizinho que é responsável na igreja de seus pais. as consequências estão à vista...

"Tens sono, Tai?"
"Sim".
"Quem tem deu tal sono, tão cedo?"
"O Deus. Eu já fui no céu. E o Deus disse para dormir no cadeirão".
"Deus é que disse isso afinal?"
"Sim. Ó tio, assim no céu também cai chuva?"
"Hum. Não sei. Vou ainda perguntar".
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Esses piratas do facebook brincam mesmo com sentimentos dos outros. É sorte que foi comigo. Imaginem que fosse ao Man'Toy dirigida esta carta... o coitado daria tudo, e acabava enganado. hahah Senão, leiamos este trecho:

"Veremos andava taciturno, enlutado ainda pela impotência de não ter notícias de Rita, a mulher com quem teve uma daquelas paixões cândidas, da qual não se conseguia libertar, já lá iam quase três décadas. O tempo, que cura tudo, inclusive os pesadelos de uma amputação, é inócuo aos hematomas, na maioria quase intactos, de um amor que findou sem acabar. No que a amar diz respeito, Veremos optou por estatelar-se no seu canto, qual Maomé de costas com a montanha".

(Gociante Patissa, in «Não tem pernas o tempo», pág. 30-31. União dos Escritores Angolanos. 2013. Luanda)
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Turismo interno: Conhecer a comuna da Hanha do Norte

30 quilómetros, a contar da rotunda da unidade operativa, separam a sede do município do Lobito da comuna da Hanha do Norte, sendo que o asfalto termina onde acaba o terreno da nova refinaria em construção. Guia-se bem, pelo menos melhor do que na experiência do Egipto Praia. Hanha do Norte, bacia pelo rio banhada, é conhecida pelo seu potencial agropecuário (banana, óleo de palma e gado), mas é também um ponto incontornável quando o assunto é manifestação cultural. Basta lembrar as incontáveis edições do Carnaval da Victória (27 de Março) ganhas pelo grupo que de lá vinha, durante os tempos de guerra, até meados da década de 1990. A propósito, onde andam os naturais, para devolver a mística?

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EXTRACTO (Gociante Patissa, in «Não tem pernas o tempo», pág. 30-31. União dos Escritores Angolanos. 2013. Luanda)


(...) Uma metade da arena estava recheada de amuletos, e é até redundância destacar isso. Incomum mesmo era o repertório que havia na outra metade. Num improvisado andaime, tábua sobre duas pilhas de blocos de cimento, que não merece sequer o nobre nome de prateleira, havia livros. Uns duzentos talvez, com os vértices carcomidos e várias camadas de poeira. As folhas ganharam do tempo e da falta de generosos leitores a cor do café e um mofo que só visto! “Esse kimbanda, que certamente não sabe ler, devia ser levado a tribunal por asfixiar lentamente os books. Livros são para se ler, deixar os coitados na prateleira só para impressionar visitas é humilhar os autores”, teorizava por dentro Man’Toy. “Que ciência procura? Acaso as almas do outro mundo vêm ler, como os pais fazem para adormecer uma criança?”

— Filho, depois deste banho, como você não conseguiu xinguilar, duas horas de batuque, é esperar pente da kianda. Como veio, é bom. Já vi bué que quer ser ngweta. Pedir no outro feitiço para ficar rico é pedir lume no curral aos cabrito, num’tem. Mas as pessoa num aprende. É terra do milho e da perdiz. Pássaro num para de dar cabo do milho, milho sempre a crescer. O que damos é sorte, da mãe kianda. Tem um conto que num conto a pessoa quarquere. Tem mistério. Anos e anos não fica velha, gente num entende ainda porquê. No tempo mais andico, os rei tudo queria manter kianda, porque é bonita. Mas eu sei que não é só isso, era para roubar segredo de viver para sempre, num envelhece, num doence. Rei da Lunda jogou no alto mar quatro navio cheia de diamante para conquistar kianda. Nada. Rei do Transval mandou cinco navio d’ouro. Nada. Rei de Cabinda prometeu tudo dinheiro do petróleo. Uns fala que Rei d’América trouxe quilos e quilos de democracia, um produto refinado lá. Mesmo assim, nada. Muito rei no mundo jogou tudo no mar, kianda recebe, só num aceita ninguém. Num tem como recramá, faz tudo na escuridão. Veio tempo. Tudo pretendente num vive mais. Kianda tem os fundo. Ainda num nasceu homem dono dela. Só tem gente que kianda escolheu para madrinha. Cada ano, kianda aparece quatro vez, este ano já veio três. Ngana Zambi num mi deu filho homem, caporquaso qui num m’intressa ter mais os benji, ‘tou ‘mbora velho, filho. Duas mulhere na minha casota. Se vem gente que quere mbora sorte, quê que custa ajudar? Chegas na praia às duzoito hora, fica de cócoras sem se mexer, abre bem os olhos, a Sereia vai te aparecer antes de cair a manhã.
— Só isso, mestre?!
— Sim, mas tem que ficar atento, porque kianda não tem paciência, fica uns segundos à tua frente, e se não vê sorriso, acha desprezo e volta no fundo do kalunga.

De manhã, Man’Toy regressava, cabisbaixo, à arena do kimbanda. Sua expressão corporal rogava por uma segunda oportunidade.
— Paizinho mestre, a kianda não apareceu.
— MENTIROSO!!! — exclamou, histérico, o kimbanda. — Conta lá! Que viste às duas horas quarenta e cinco minutos?

Man’Toy não respondeu. Eventualmente esteve a ressonar na referida madrugada, sonhando estar confortável, sobre a cama da areia, enquanto as horas caminhavam.
— Não gosto doente teimoso. Nunca vorta mais! SAI MBORA!!!

Man’Toy carregou durante meses o peso do fracasso, e sobretudo a culpa, por não ter aguentado, de cócoras, uma única noite acordado. Mas não desistiu de caçar uma vida estribada, afinal já esteve tão perto! Decidira atribuir o fracasso à fraca pedagogia do kimbanda e à matreirice da kianda, criticando desta última a forma nada igualitária de escolher afilhados. Afinal, se o próprio kimbanda disse que a kianda conseguira passar a perna a réis e soberanos de forma recorrente, que lhe custaria tramar um simples kamundongo? (...)
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terça-feira, 27 de agosto de 2013

Repensando o papel do júri

"Julgar não é procurar lacunas no trabalho de alguém; é, se tanto, olhar e tentar ver o que fizeram bem. É o que acredito ser o papel do júri." - citando de memória uma cineasta ao canal Euronews, 27.08.13
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Jornal Popular – Qual é o livro para teres à cabeceira: ensaio, romance ou poesia?
Paula Simons – Poesia. Leio muito em função do trabalho e a poesia traz uma maneira doce de dizer até o que dói. Na cabeceira, quando não é hora de trabalho, prefiro a suavidade da poesia.
In «Jornal Popular», 11 de Março de 2013
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Redacção: O DESCOMPASSO

Nota: os participantes tiveram 20 minutos para escrever uma redação, que podia ser sobre o Lobito ou outro tema a seu critério, visando fazer um levantamento das habilidades antes da exposição ao conteúdo do workshop sobre “Breve Introdução ao Género Crónica”. Publico as redacções que me parecem representar a esperança na continuidade da prosa literária em Benguela, considerando que são jovens que se dedicam (apenas) à poesia. GP

Redacção: O DESCOMPASSO

A minha presença na roda da existência de um circuito que se chama sociedade, quesem que me interessasse nela, fui obrigatoriamente inserido e aceite.

Porém, a obrigação de ser inserido e a facilidade de ser aceite sem julgamento fez com que entrasse no mundo de um compasso, onde a minha presença fez a minha diferença. A diferença de estar presente nesse compasso obrigou-me a ser o contrário daquilo que é normal, comum e equilibrado num universo sem diferenças.

O compasso foi cada vez mais girando numfuso anti-horário das minhas intenções mas perto da minha parede social, enquanto uma unidade de um todo. Por saber que o movimento giratório era inverso do normal, esquerda-direita, apercebi-me que o real seria eu acompanhar o andamento normal da nova ordem giratória do fuso horário, uma vez que a obrigação de estar inserido ganhou o direito de ser aceite sem regras.

Surge então a petulância de ser sequaz, na organização actual dos sentidos avariados, sem a concepção do meu ser e dos sentidos em desordem.

Entretanto, seguir a onda dos movimentos ora adoptados por mim, nesta nova onda de entendimento, fez com que me tornasse um novo ser para uma nova e actual realidade.

Mas qual é a nova e actual realidade? É a nova visão, que aparece no horizonte nos meus pensamentos sem que as tivesse visto antes da minha existência.

É o conflito com o despreocupante. É a guerra contra o bem. É tudo contra o bom de muitos. É o descompasso.

Por Efraim Mariano João Chinguto, Lobito, 24 Agosto 2013
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Redacção: LIVRO

Nota: os participantes tiveram 20 minutos para escrever uma redação, que podia ser sobre o Lobito ou outro tema a seu critério, visando fazer um levantamento das habilidades antes da exposição ao conteúdo do workshop sobre “Breve Introdução ao Género Crónica”. Publico as redacções que me parecem representar a esperança na continuidade da prosa literária em Benguela, considerando que são jovens que se dedicam (apenas) à poesia. GP

Redacção: LIVRO

O livro é um instrumento valioso, indispensável e escasso muitas vezes na nossa sociedade, uma vez que para estudar, tanto os adultos como as crianças, precisam do livro para ler, orientar e reter mais conhecimentos.

Então é preciso que haja mais livros nas escolas, bibliotecas e livrarias, que os preços sejam mais flexíveis e que os pais e os professores e a sociedade em geral passem a incentivar o amor pela literatura, porque na falta de leitura também se tira ou pode tirar muitas negativas nas provas e o estudante corre o risco de reprovar.

O livro é um meio muito importante para se chegar a um conhecimento e através dele se constrói um país maravilhoso, de homens sábios com capacidades científicas e dignas. Para isso, é preciso muito e bons escritores que além de pensar façam pesquisas.

Esta é uma mensagem que vai para todos os ministérios, especialmente o da educação.

Com muita estima.
Por João Tchipaka, Lobito, 24 Agosto 2013
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Redacção: A literatura e o gosto pela leitura

Nota: os participantes tiveram 20 minutos para escrever uma redação, que podia ser sobre o Lobito ou outro tema a seu critério, visando fazer um levantamento das habilidades antes da exposição ao conteúdo do workshop sobre “Breve Introdução ao Género Crónica”. Publico as redacções que me parecem representar a esperança na continuidade da prosa literária em Benguela, considerando que são jovens que se dedicam (apenas) à poesia. GP


A LITERATURA E O GOSTO PELA LEITURA

Eu penso que a literatura é algo muito importante, principalmente na camada juvenil.

Defendo que os jovens actualmente leêm pouco e quase não conhecem os escritores nacionais, visto que o mais conhecido por eles é o autor António Agostinho Neto, dentre poucos outros.

O gosto pela leitura deveria ser cultivado a partir da mais tenra idade, pois as crianças têm maior capacidade de aprendizado e uma criança que saiba ler e escrever bem é um orgulho para a sociedade.

Antigamente as mulheres eram vistas apenas como donas de casa e não poderiam frequentar a escola, só as mulheres de alta sociedade tinham este privilégio e as demais mulheres eram negadas deste bem precioso que é a escrita e a literatura.

É necessário que se implemente mais livros em escolas e professores capacitados, pois há carência de livros em algumas instituições.

Actualmente dá-se patrocínio a quem faz eventos de festas e para eventos literários há escassez de apoios.

Ler é crescer! Quem lê e escreve bem garante um futuro brilhante, pois o bom escritor é um bom leitor.

Em angola quando se fala de literatura fala-se também dos seguintes nomes: Agostinho Neto, Maria Eugénia Neto, Álvaro Alves, Paula Russa, Gociante Patissa, Alda Lara, Pepetela, Aires de Almeida Santos, Óscar Ribas, Uanhenga Xitu dentre outros por mim não citados.

Ler é viajar num mundo jamais visto. É voar sem sequer sair do chão. É conhecer lugares, culturas, povos, hábitos e costumes, gastronomias diferentes.

Por Laurinda Constância Kapiñgala, Lobito, 24 Agosto 2013
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segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Na sequência da sua actuação algo razoável, em play back parcial, no palco do concurso de miss município, a dupla de adolescentes tem os merecidos dois minutos de entrevista: "o que é que pensam ser no futuro"?, indaga o apresentador do evento. "Queremos ser mesmo romantiqueiros", determinam. E o público põe-se a rir.
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Redacção: A FILA ANDA

Américo Chiquete
Nota: os participantes tiveram 20 minutos para escrever uma redação, que podia ser sobre o Lobito ou outro tema a seu critério, visando fazer um levantamento das habilidades antes da exposição ao conteúdo do workshop sobre “Breve Introdução ao Género Crónica”. Publico as redacções que me parecem representar a esperança na continuidade da prosa literária em Benguela, considerando que são jovens que se dedicam (apenas) à poesia. GP

Redacção: A FILA ANDA

Ele estava sentado nos porões da Ponta da Restinga. Olhava fixamente ao infinito do mar na companhia de uma cerveja pensativa. Questionava-se a si mesmo, sobre as dificuldades que a vida lhe tem oferecido: “o que é que eu já fiz esse tempo todo? E o que me falta fazer nesse eterno-curto tempo que me resta?” Na verdade ele sabe que ainda tem muito que fazer.

– Oi cara! – Ouviu a voz suave de uma bela rapariga.
– Eu sou a Ana – Apresentou-se ela.
– Tchikambi! – Respondeu ele num tom muito antipático.

O vento e as ondas do mar pararam de cantar e o mundo reduziu-se naqueles dois jovens que se encontravam na tarde de sexta-feira de Julho.
– Quer me ensinar a nadar? – A bela rapariga solicitou uma breve aula de natação. Tchikambi não conseguia entender porque uma jovem tão bela poderia se interessar de um rapaz infeliz. Afinal de contas todas as raparigas a rejeitar porque o acham se graça.

Tchikambi aceitou timidamente o pedido, pensando que tudo seria apenas uma falsa ilusão. Depois de alguns minutos de aulas, a Ana num tom muito suave disse aos ouvidos de Tchikambi, “gosto de ti, quer namorar comigo?”.

Naquele instante ocorreu uma metamorfose em Tchikambi e não mais passou a se sentir um infeliz e sem graça.

Na verdade, a vida é como uma fila, todos podem chegar em frente, o último também pode chegar em frente.

Por Américo Chiquete, Lobito, 24 Agosto 2013
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Turismo interno: Visita à comuna do Egipto Praia

Aceitando o repto do jornalista Ribeiro Tadeu, Rádio Lobito, desafiei os 90 km entre a sede do município do Lobito e a comuna do Egipto Praia, local que vem ganhando alguma mediatização nos últimos dias, em função de um concurso sobre as maravilhas de Angola. Desta vez tive a companhia do Félix Tchissingui, meu colega de serviço, na sua primeira visita também. Segundo relatos, o nome deve-se à aparência de pirâmides egípcias que as reentrâncias e saliências oferecem a quem por ali passar pela via marítima. É um troço interessante para os que gostam de conduzir para lá do asfalto.
Patrocínio judiciário precisa-se para processar o governo comunal, uma vez que em seu território rebentou-se um pé dos meus chinelos hehehe
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domingo, 25 de agosto de 2013

Redacção: A minha turma

Nota: os participantes tiveram 20 minutos para escrever uma redação, que podia ser sobre o Lobito ou outro tema a seu critério, visando fazer um levantamento das habilidades antes da exposição ao conteúdo do workshop sobre “Breve Introdução ao Género Crónica”. Publico as redacções que me parecem representar a esperança na continuidade da prosa literáriaem Benguela, considerando que são jovens que se dedicam (apenas) à poesia. GP

A MINHA TURMA

Era uma vez a minha turma, grande e numerosa, com homens de diversas idades e estaturas, e de vários grupos étnicos e linguísticos.

Uns mais versados de conhecimentos e outros nem tanto, o objectovo da maioria, aprender, de como fazer uma crónica, seguindo os seus parâmetros técnicos e científicos na sua elaboração e estruturação.

O meu instrutor, que não queria ser chamado por título de doutor, professor, mestre, nem uma outra alcunha, queria simplesmente ser tratado pelo seu nome, nada mais. Dizia o instrutor, hoje vamos fazer uma redacção, para que eu possa fazer um diagnóstico daquilo que vós já sabeis.

Alguns ficaram muito assustados com o exercício, que aos seus olhos parecia uma brincadeira da quarta classe, outros sorrindo, pensando que depois da redacção poderemos levar um bom ou mau, mas tudo de acordo com a produtividade de cada um…

Por Pedro Harrady, Lobito, 24 Agosto 2013
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Sentido giratório do ponteiro do relógio

"Porque é que deixaste o outro falar primeiro, se era tua vez?"
"Ah... vamos todos falar".
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sábado, 24 de agosto de 2013

Neste momento, discussão sobre a mensagem e o estilo em UMA CERTA MADALENA

… Ruas misteriosas, sombras pelo caminho e uma sensação de perigo e paz, aquele silêncio magnífico, eu e Deus, aos poucos um e outro atleta, um e outro escravo do horário, e aquelas gloriosas mulheres que de sol-a-sol cruzam ruas e avenidas levando consigo quase sempre dois embrulhos humanos e um material, este ultimo, o garante do sustento dos humanos: zungueiras!

…como em todas as manhãs, trouxe-me um: preto, cremoso, cheiroso -mesmo depois de já me ter feito companhia um outro, aceito-o, mais pela gentileza do que pelo desejo - ela que vem de outro extremo distante da cidade, e garante o pão para filhos e netos a oferecer o precioso café. Muitas vezes, o pão fica pela metade porque a outra metade é consumida na própria luta pelo pão, entre o asfalto de azul e branco e a vermelha terra batida –uma certa Madalena!

Cortinas afastadas, olhar perdido no vermelho das acácias, poucas, mas tão rubras que contrastam com o céu azul onde o lápis insiste em escrever os tons da vida: certezas, incertezas, as angústias…
Entrincheirados em seus pensamentos atravessam a curta avenida rumo a um longo dia que muito cedo começou (deve ter começado), lá a frente a certeza de um futuro melhor, estudantes!

Um e outro, os humanos se sucedem na expectativa do amanhã incerto, e a sirene entrecorta o pensamento, é um deles rumo ao lugar onde proíbem e permitem, rumo as estratégias do egoísmo que acaba com a vida dos que dizem governar, mas, a vida segue curso... deixo o lápis solto no ar, ainda com muitos tons por escrever…e separo-me então da observação dos humanos, afinal viver ultrapassa qualquer entendimento e, e Deus, Deus certamente da a cruz que cada um consegue carregar... eu aqui a carregar a minha!

Por Anna Mathaya, 16/12/2009, in www.annamathaya.blogspot.com
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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Citação


“A paz de um homem é uma tranquilidade estranha. Vive de versos escondidos quando a poesia viaja anónima no comboio da nossa imaginação. E dança nos píncaros das lágrimas se houver um palco para exibir os sonhos e as tristezas. Morre como as moscas, no Verão, por absoluta falta de ritmo e de repto”. João Serra, in «Jornal Cultura», 5 a 18 de Agosto de 2013
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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Ainda há pouco

Pai: Agora já podes tratar documento para conduzir.
Ataíde (4 anos): A Helda (3 anos) já tem.
Pai: Tem o quê?
Ataíde: documento pra conduzir. Está na geleira.
Pai: Na geleira?
Ataíde: Sim.
Eu: Então documento é o quê?
Ataíde: Que tem foto!
Pai: E fica na geleira?
Ataíde: Que não está ligada.
Pai: Ok.
Ataíde: Aquele carro do papá (Toyota Avanza) é de mulher.
Pai: É de mulher? Viste como?
Ataíde: Vi mesmo que tem parte de mulher.
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Gosto de Benguela pelas suas gentes, suas paisagens e sobretudo por ter leis próprias, que só por cá são impostas. Qualquer dia isso se torna República independente, dentro desta Angola dos meus pais.
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quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O editor que me perdoe pela inconfidência de partilhar trecho do conto FÁTUSSENGÓLA, O HOMEM DO RÁDIO QUE ESPALHAVA DÚVIDAS, um dos 13 que compõem o livro de contos com o mesmo nome, da teimosa pena de Gociante Patissa, previsto para sair ainda este ano por um projecto editorial a ser conhecido brevemente

"Ia na quinta morte, quando o tipo aportou a cidade. Sim, porque divórcio não é senão outra forma de morrer. Basta ver que, por lei, só divórcio e morte dissolvem a instituição universal chamada matrimónio. Mas não vou discorrer sobre a aura maniqueísta que envolve a morte mundana. Quero olhar para um outro aspecto da questão, apenas como o fim de uma vida e início de outra. Em certas existências, o divórcio, como a própria morte, no fim das contas, só peca por tardar.

Fátussengóla passava dos quarenta anos, que pareciam vinte e oito, de tão franzino. As únicas referências que transportava de outros lugares, observáveis como tal num primeiro contacto, eram os dados do bilhete de identidade. Nem uma palavra sobre o seu passado, muito menos aquelas fotografias na carteira de documentos (que tornam os humanos um pouco mais humanos longe de casa). Bem, tinha a companhia inseparável do seu rádio do tamanho de um tijolo que, de tão rijo, devia ter sido fabricado no antigo Bloco Soviético.

Uma vez formalizada a separação, vendia os haveres que lhe coubessem e se entregava à estrada, em busca de outro lugar para renascer, invariavelmente uma capital de província. O resto era estabelecer contactos, com o já previsível titubear de quem aprende a caminhar, se bem que em Benguela acabou logo bafejado pela sorte
(...)
Pouco falava de seus divórcios, talvez por lhe ter marcado a última relação, com a kambuta Rodé, tão dócil quanto rija, a quem acusa de violência literalmente doméstica. Certa vez, ela foi procura-lo ao bar em que ele se costumava esquecer de si próprio. Com insuspeita calma, acertou a cabeça do homem com panela de pressão. E saiu tal como chegou, calada e vagarosa nos passos." 

Aguarde.
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Quando digo que não já acredito nos homens (conceito de seres humanos), a minha amiga assusta-se. Talvez soe algo trágico, só que, como escrevi algures "nada restou para admirar/ nem se caçam mais quimeras".
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"O tempo, que cura tudo, inclusive os pesadelos de uma amputação, é inócuo aos hematomas, na maioria quase intactos, de um amor que findou sem acabar." Gociante Patissa, in «Não Tem Pernas o Tempo» (pág. 87. 2013. UEA, Luanda)
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Ofertas com sonho por dentro

"Ó papá, papá, esse cão é teu. Te dei, yá?!", diz-me, bem-intencionado, o Dávio, sobrinho de aproximadamente três anos (na minha tradição é filho, porque filho do meu irmão), referindo-se ao "stick", um cão que mais não faz do que esfregar-se em mim e sujar a roupa toda quando me vê, desde que chegou em casa da minha mãe, muitos anos antes de o benfeitor nascer. "Obrigado, ya?", respondo no âmbito do politicamente correcto hehehe
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"Conseguiste a nacionalidade?"
"Não."
"Espera aí, vou arranjar a cédula carimbada."
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terça-feira, 20 de agosto de 2013

Crónica: O tempo, preso a si, se mutila

J. Patrocínio
Nota: Este é o texto vencedor da primeira edição do Concurso “NÃO TEM PERNAS O TEMPO”

O meu kamba Patissa atirou para o tempo que não tem pernas, o espicaçar de se estar. Não li o Não tem Pernas o Tempo, nem acompanhei as dikas do meu manão. Acompanhei, isso sim, o comentário da Cristina, divulgado pelo próprio Patissão. Tal como o “Tempo”, também a “Liberdade”, enquanto um é a outra e a outra sendo o um, sem pernas nem existência, me atirei livre para aqui, asas soltas embriagadas:

Assim começo!

O tempo, preso a si, se mutila, curtindo-se, no infinitamente pequeno do permanentemente imutável. O tempo não passa, nem se recorda, não vive saudades nem sonhos futuros. Não se há passados nem se constroem amanhãs, nas florestas que se brotam nos desertos à beira-mar. Se desgasta tão-somente, na sua ditada essência.

Faz-se inventá-lo e deixa-se usar, que nem inocente, como dogma de medida, de percurso, de processo. Sorri tonto para nós, que nem poema de Fernando Pessoa na boca de Maria Bethânia. “Vivemos juntos os dois como a cor do íntimo”.

E ele se desliza nas histórias e embala o ser criança. Dá corpo a bichos e a rainhas, dá força a guerras e a revoluções. Se tinge de cansaços e se camufla de ilusões. Se aberra de importância, se enche de números, letras, frases e constelações. Se faz pai de si próprio e se transforma em espaço, em distância, e em sua própria medida.

Enquanto ele se faz, se é, efemeramente presente, se debota de murcho, nas pétalas que se coloram castanho, enchendo o redor duma jarra qualquer, num canto, por cima dum naperão bordado por mãos que ansiavam tocar na imagem sempre sonhada, de seu príncipe encantado.

Transforma o aveludado da delicadeza das mãos em rugas profundas dum rosto que se esquiva do espelho, imaginando-se abstrair dos sonhos apunhalados, espezinhados, mas mal enterrados em alguma parte do eu.

Domina, que nem sombra, do cimo da sua inexistência, sociedades, reinos, economias e mercados, aprisionando as almas aos anseios e à peça que sempre se mantém em cena, onde todos são actores, figurantes e cenários, acreditando que dirigem seus indomináveis roteiros. No vazio da sua presença se engrandece no controlo da rotina do embriagado da noite numa ruela qualquer. Monta artimanhas, no egoísmo de um banqueiro que se engole pelo cheiro do dinheiro, fazendo-se estratagemas, iludindo-o em prazeres. Cria confrontos à beleza que nem limbo que se cola e descola na actriz que passeia sua peruca loira dentro de saias e vestidos, flashes e entrevistas, sorrisos tão bem treinados, escândalos e noivados, entre ser grande e o seu próprio desaparecer. Dilui-se como maldade nas leituras dos curiosos, das vidas do alheio.

Sem pernas, o “Tempo”, enfeita-se dum sorriso, duma lágrima, dum palrear de criança, dum chilrear longínquo, dum sentimento profundo, dum corpo no corpo perfeito, no corpo duma mulher. E assim, sem pernas, o “Tempo”, se enterra no próprio tempo em que ele mesmo se existiu, onde ele mesmo se nasceu!

Por José Patrocínio, Lobito 16 Agosto 2013
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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Anúncio do resultado do concurso “não tem pernas o tempo”


Terminado o prazo, temos a anunciar que somente um texto deu entrada, do concorrente José Patrocínio. Eis o enunciado: durante as entrevistas promocionais, várias informações têm sido passadas sobre o que o livro retrata e como surgiu. Com base nisso, descreva a relação que há entre a presente fotografia e este novo livro de Gociante Patissa. A explicação, comentário e/ou interpretação do concorrente deverá conter pelo menos 10 linhas em tamanho 12, times new roman.


A RESPOSTA DEVIA BASEAR-SE NO SEGUINTE: Entre 2003 e 2010, ao serviço da AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade), Gociante Patissa coordenou e moderou um programa de mesa-redonda radiofónica através da Rádio Morena Comercial sobre cidadania, prevenção de conflitos e saúde pública, que começou com o nome "Palmas da Paz" e metamorfoseou posteriormente para "Viver para Vencer" e incluía uma rubrica chamada "Nossa homenagem", onde se apresentava em entrevista de perfil a história de sucesso de gente aparentemente simples. Quis sempre entrevistar um profissional do ramo funerário, para ouvir de sua justiça como é que se sentiam quando a sua actividade implica lidar com luto de alguém. Na verdade, nunca se interlocutor. Ficou-lhe sempre intrigada essa frustração. Foi então que em 2009, num evento festivo na União dos Escritores Angolanos, fotografou uma planta. A flor tinha uma luz radiante, mas o fundo era todo ele escuro. Ocorreu-lhe que aquilo tinha aspecto fúnebre... nasceram ali as primeiras linhas do que hoje é o romance "Não Tem Pernas o Tempo" (121 páginas), que terminei em 2011.

O Texto da autoria de Patrocínio não responde taxativamente ao enunciado, mas é uma linda crónica que não deixa de ter relação com o tema do livro, o tempo e as pernas. Assim, o livro vai para José patrocínio, cuja crónica vamos publicar logo a seguir. Amanhã cuidaremos de levar o exemplar autografado à sua casa. Parabéns, você é capaz!
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"Pela segunda vez, o mesmo impasse, a mesma solução que sugiro e resulta, porque óbvia. É uma questão de falar com o seu colega e confirmar, porque não sairia da minha casa para vir cá inventar que tenho algo com a vossa empresa agendado, caramba! Incompetente? Talvez não, deve é pensar lentamente".
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Jornalista João Serra e o questionário que a morte guardou

João Serra (in Facebook)
Nota: Foi com tristeza que me chegou por telefone a notícia da morte (súbita) do jornalista João Serra, em Luanda, na noite de domingo, 18/08/13. Fui por ele entrevistado sobre o meu trabalho literário no passado dia 12/08. Seguiu-se um questionário por-email para complementar o artigo que publicaria provavelmente no Jornal Cultura (ou no Agora). Só me resta guardar boa memória do pouco contacto que tivemos. Uma das passagens que retive dele é: "As pessoas devem olhar para um gajo e pensar que está velho. Estou velho é para o que não quero, para outras coisa estou bem vivo". Seguem-se as perguntas e as respostas ao questionário que a morte guardou.

João Serra (JS): Este teu mais recente livro “Não tem Pernas o Tempo” muda alguma coisa em relação aos dois anteriores, que são de poesia e romance?
Gociante Patissa (GP): Bem, este novo livro muda sempre, no sentido de marcar a minha entrada para a narrativa um pouco mais extensa, portanto num género diferente. O primeiro (Consulado do Vazio) foi de poesia, o segundo (A Última Ouvinte) uma coletânea de contos.

JS: O título desta obra não parece ter ligação visível com o texto  do livro. Ou estou enganado?
(GP): O título representa basicamente atribuir ao discurso do personagem Man’Toy (que mais tarde passou a chamar-se António Veremos), como se a presenta na última linha do último capítulo, verso de um poema também meu, que a seguir reproduzo.

NA TEORIA DO RESULTADO

O reencontro
mesmo com a prisão

molha
na largura dos olhos
o barro p’ro novo sol

Não tem pernas o tempo
seriam longas
ou curtas demais

Resumindo, tem que ver com o facto de se tratar de um romance suspenso no tempo e em busca de um quase improvável reencontro.

JS: Quais são os próximos títulos que tens na forja? De que géneros te ocuparás a curto e médio prazo?
GP: Livros no prelo e com previsão de sair em 2013: Guardanapo de Papel (inédito, poesia com edição em curso pela NósSomos. Lisboa, Portugal); Fátussengóla, o Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas (contos, por uma editora de Luanda)

JS: A literatura para ti é um meio ou um fim? Apenas escrever não garante sobrevivência financeira, salvo em alguns casos de grande sucesso. Situação de vendas?
(GP): Considero-me um bicho que nasceu para comunicar e criar, ao que se junta a missão de contribuir para deixar escrita parte que me for possível recolher e tratar em termos de tradição oral africana. O primeiro livro (Consulado do Vazio), que saiu por auto-patrocínio, permitiu arrecadar pelo menos 60% do investido, embora estivesse sempre claro que se trataria de fundo perdido. Falar do segundo (A Última Ouvinte) é complicado, uma vez que para Benguela, o único lugar em que se fez lançamento, mais não vieram do que duzentos exemplares, já esgotados. Neste último, nos dois actos de lançamento, arrecadamos cerca de 130 mil kwanzas, quando as estatísticas há 10 anos indicavam o litoral de Benguela como tendo acima de 4 milhões de habitantes. Portanto, há que ter emprego convencional para o sustento.

JS: Tens influências especificas quanto a outros poetas e narradores?
GP: Geralmente, fixo textos, não propriamente nomes. Gosto de vários textos específicos de vários autores, é difícil gostar-se de toda a obra. Agora, para mim, o escritor vai além do produto, conta também o seu papel na sociedade enquanto cidadão. De tal sorte que admiro muitos, antes mesmo de tomar contacto com o seu trabalho. Há textos de João Tala, Rodherick Nehone, Carmo Neto, António Lobo Antunes, Gabriel Garcia Marquez, Sidney Sheldom, Viriato da Cruz, Raul David, Manuel Rui Monteiro, por exemplo. Confesso que mais facilmente me atraem narrativas ou mesmo poemas que encerrem não apenas a preocupação estética, mas também a recolha de elementos étnicos africanos (de forma construtiva, não necessariamente como exotismo). Incluiria Uanhenga Xitu, José Samwila Kakweji, David Capelenguela, Abreu Paxe, entre outros.

JS: Descobriste a escrita e a literatura ou foste descoberto por elas?
GP: Diria que tive sempre uma queda pela disciplina de língua portuguesa, sendo que as maiores notas ficavam-se a dever às redacções. Mas tudo começa em finais 1995 quando frequentava a 7ª classe. Morava no bairro da Santa Cruz, no Lobito, e estudava na escola do 3º nível dos bambús, na Catumbela, caminhando a pé diariamente cerca de 12 quilómetros. Num destes dias, "fuguei" às aulas. Ia passar pela administração comunal da Catumbela quando uma carrinha branca parou em minha direcção. Era a reportagem do "Comboio da Amizade", programa infanto-juvenil da Televisão Pública de Angola, delegação de Benguela. Queriam saber onde ficava a escola dos Bambús, e eu disse-lhes que estava a vir de lá. Subi na carroçaria para indicar o caminho e fui entrevistado. E mais, participei ainda no concurso de quem devorava mais rápido um gelado (no frio de Julho). Ganhei, talvez mais por ser uma oportunidade de gozar daquele luxo. Aí fomos mandando cartas ao programa, até um dia ser em 1996 convidado a assistir às gravações. Surgiu ali a ideia de rabiscar um poema, com o qual fui filmado... Nunca mais parei.

JS: Quando é que isso ocorreu?
GP: Respondido na pergunta anterior.

JS: Esperas ir até quando e aonde na literatura?
GP: É um pouco complicado ter metas estanques quando se é mais ou menos principiante. Minhas preocupações prendem-se ainda com a divulgação e distribuição do meu trabalho. Mas devo reconhecer que vou tendo oportunidades incomuns para autores do meu tempo, sendo uma destas o facto de ter sido convidado para ser membro da União dos Escritores Angolanos. Isso dá-me possibilidades de crescer na interacção com grandes nomes da literatura angolana, bem como ter textos internacionalizados por via da tradução de contos incluídos em antologias em hebraico, italiano, entre outros idiomas. Gostaria, claro está, de um dia beneficiar de uma bolsa de criação literária que me permita estar mais concentrado na construção de um livro, já que trabalho em aviação e o ambiente de atendimento público em aeroportos ser estressante. Enfim, a literatura continuará sendo um compromisso meu, enquanto difusor da identidade também.

JS: Que dizes das novas gerações de literatos nacionais, falta lhes o que para seguirem em frente?
GP: Bem, a nova geração de autores reflecte também as debilidades do seu tempo, no que toca ao domínio da língua, à consistência (ou não) da sua cultura geral. Há um entusiasmo crescente, mas como disse recentemente um escritor que se evidenciou na década de 80, está difícil divisar uma geração mais ou menos a partir do ano 2000, o que há são valores isolados. Um dos aspectos que, quanto a mim, representam uma faca de dois gumes é o papel das novas tecnologias de comunicação e informação, bem como a ausência de uma editoria especializada para questões de crítica ou análise literária na imprensa. Por exemplo, quando a única referência que se tem, falo de jovens e adolescentes, é a poesia declamada aos holofotes e gravada em discos, corre-se o risco de se ter uma visão muito reduzida de literatura, confundindo-se a árvore com a floresta. Se antes era o debate, a tertúlia, hoje imperam a declamação e o “elogio”.

JS: E os antigos, qual o papel deles? Cita nomes.
GP: Penso que caberia aos antigos uma contínua identificação de mecanismos e estratégias para orientação metodológica dos potenciais autores, numa espécie de caminhada conjunta. É verdade que isso vem sendo feito, mas é pouco ainda. Há depois o velho problema da inconsistência dos paradigmas para um rigor na tal crítica, de modo a não impor preferências individuais ou de época e amizades como o único critério. E a continuar esse fosso entre os consagrados e os que titubeiam, receio qualquer dia virmos a ter uma nação de escritores a título póstumo.

JS: Fala um pouco do livro NÃO TEM PERNAS O TEMPO e dos anteriores.
GP: Obras publicadas: Consulado do Vazio (poesia), KAT - Consultoria e empreendimentos. Benguela, Angola, 2008. – com capa de Délio Batista; A Última Ouvinte (contos), União dos Escritores Angolanos. Luanda, Angola, 2010; Não Tem Pernas o Tempo (romance), UEA. Luanda, Angola, 2013

Primeira obra:
Em 2008, fiz uma colecção de poemas que vinha produzindo ao longo de 12 anos e publicamos o livro "Consulado do Vazio" (52 páginas). Por sugestão da editora local, KAT, a capa devia ser um quadro de pintura, preferencialmente de um artista local. Depois de várias promessas não cumpridas (de artistas até mais ou menos da minha geração), um amigo apresentou-me ao "tio" Délio Batista. Falei com ele às 9h00 da manhã, tendo recomendado ir ter com ele ao atellier por volta das 11h. Lá posto, deu-me um monte de fotografias para escolher a que me agradasse. Rapidamente, identifiquei o quadro "De Pernas Cruzadas".

Segunda obra
Quando publicamos a primeira, já eu tinha praticamente concluído um projecto de contos, mas sentia que devia sair por uma editora com maior visibilidade. Tentei em algumas, que nem se importaram em ler o material, já que nome de principiante não garante vendas. Ousei submeter o manuscrito à mesa de leitura da União dos Escritores Angolanos. Aquilo deu entrada na 5ª feira e, já na 3ª feira que se seguiu, recebi telefonema do escritor Adriano Botelho de Vasconcelos, na altura secretário-geral, a dizer que tinha lido durante o fim-de-semana e decido publicar, o que veio a ser o livro "A Última Ouvinte"(93 páginas). Foi uma enorme alegria! Já com a obra a sair da gráfica, e somada à primeira, estava completo o requisito básico. Fui na sequência convidado a ser membro, tendo tomado posse em um grupo de 12 novos membros em 2009.

Terceira obra
Entre 2003 e 2010, coordenei e moderei um programa de mesa-redonda radiofónica sobre cidadania, prevenção de conflitos e saúde pública, que incluía uma rubrica chamada "Nossa homenagem", onde apresentávamos em entrevista de perfil a história de sucesso de gente aparentemente simples. Quis sempre entrevistar um profissional do ramo funerário, para ouvir de sua justiça como é que se sentiam quando a sua actividade implica lidar com luto de alguém. Na verdade, nunca conseguimos interlocutor. Ficou-me sempre intrigada essa frustração. Foi então que em 2009, num evento festivo na União dos Escritores Angolanos, fiz uma fotografia a uma planta. A flor tinha uma luz radiante, mas o fundo era todo ele escuro. Ocorreu-me que aquilo tinha aspecto fúnebre... nasceram ali as primeiras linhas do que hoje é o romance "Não Tem Pernas o Tempo" (121 páginas), que terminei em 2011. 

O livro é um retrato social que atravessa as últimas quatro décadas. A trama começa em Luanda nos primeiros anos de Angola independente com a perda de emprego de Man’Toy, motorista funerário que se viu tentado a consolar uma jovem viúva em pleno cortejo, gesto interpretado como assédio pela sogra desta. Mais tarde, na viagem de Luanda para o Bié, o autocarro em que seguiam acciona uma mina terrestre, resultando disso a amputação de uma perna ao personagem principal e o desaparecimento da namorada. O ano de 2002 e o fim do conflito armado vêm reforçar as esperanças de reencontro, entretanto dificultado por desconhecer o sobrenome da pessoa que procura.
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A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

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