terça-feira, 28 de junho de 2011

Crónica: "O mito não morre"

O domingo iniciava no sábado, à hora de nos irmos deitar, um pouquinho a seguir às galinhas, tais eram a ansiedade e o volume de fantasias que embalavam o nosso sono garoto!

Ainda hoje tenho dificuldade em descrever um domingo daqueles, se não for a começar pelo pôr-do-sol, quando o dia, que se afigurava interminável, se ia à vida. Víamos, então, o grande sentido que reside em se dizer que a felicidade não se vive, recorda-se apenas. Tão cedo perdoávamos o homem, ou sei lá a força, que se arrogava de precipitar a manivela do tempo. Uma zanga curta; se calhar, para que não fosse longa a ponte entre um domingo e outro.

Dominávamos o itinerário do dia seguinte como a palma da nossa mão, afinal não varia assim tanto em meios pequenos a rotina – deixai-me abusar deste pleonasmo sociológico. Nada de ficar na berma da estrada, a ver se caía do céu coluna de soldados cubanos para permutar conserva enlatada com porcos, e com isso assistir ao espectáculo que era a corrida desenfreada, de quando em quando, atrás de quadrúpedes que rebentassem as fibras de bananeira que se faziam passar por cordas. Nada de ir com restos de manteiga à padaria, atrás do pão quente, nem à pesca nem a piqueniques. Tão-pouco nasciam bebés de barro.

Ir à igreja era obrigatório, e como tal paragem insonsa. Ao meio-dia vinha a melhor parte, o passeio pelos bairros, levando-nos às mesmas casas, aos mesmos parentes. E nos esquecíamos da maçada de tomar o banho de rio naquele cacimbo insidioso, capaz de deixar amarga a rama e o bananal sem vida, como se das queimadas fossem alvos. Calcorreávamos as picadas atrás das nossas motorizadas virtuais, que não passavam de esqueléticas jantes de bicicleta, achadas sabe-se lá quando. Ao osso achado o cão questiona pertença anterior, por acaso?! Era por aí.

Em casa da avó nos aguardava um arroz substituído por rolão de milho, toupeiras assadas com o melhor em alho e hortelã, e ainda mandioca ou batata-doce fervida, conforme a safra sazonal. Às vezes achávamos demais as orações, mas toleráveis, como aliás se suporta o gosto do gindungo.

A avó tinha a mania de nos repetir que o governo nos daria carro um dia, se estudássemos. Não faltava vontade de perguntar por que não quereria, ela também, um carro, uma vez que em nenhum momento nos parecia que quisesse matricular-se na alfabetização, conhecida à época por EBOC (Escola Básica Operária e Camponesa). O que era governo, não imaginávamos, creio até que não sentíamos dele falta alguma directamente. A avó plantava mitos, e o mito não morre.

Mas o que eu adorava mesmo era ver a avó cantar hinos cristãos, quase sempre acrescentando-lhes ou retirando sinónimos, tons vocais ou metáforas, o que os tornava ainda mais originais. Não voltavam a ser os mesmos depois que caíssem nos ouvidos dela! Que óptima era! Os hinos, talvez por não existirem gravadores, pareciam renovar-se em cada entoar. É que o único gravador da comuna era um à corda, que mal servia para qualquer estatística que fosse.

Chamou-se Kuayela, do provérbio Umbundu «kuayela osema, ovipula njala oko vili» (onde a fuba farta, há também famintos). Hoje, ó avó materna, que não conheci e tento reconstituir, ouve o que te digo: com tantas confusões, nós, o povo em geral, que não dirigimos nem mudamos directamente as coisas, merecíamos, de quando em quando, mudar de mundo, mas, oh tragédia, só temos este e aquele outro, o teu, o da inverosimilhança.


Gociante Patissa, Aeroporto da Catumbela, 28 Junho 2011
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domingo, 26 de junho de 2011

sábado, 25 de junho de 2011

quarta-feira, 22 de junho de 2011

socioeconomia

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terça-feira, 21 de junho de 2011

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Restos mortais de Bráulio Teixeira e Serafim Morais já repousam no cemitério da Catumbela

Em funeral conjunto, Filipe Bráulio Teixeira e Serafim Fernandes Lopes Morais, o "Sera" como era conhecido, partiram às 14 horas de hoje (20/06) da Unidade do Corpo de Bombeiros, ao bairro da Caponte, Lobito, para o cemitério da Catumbela, onde repousam.

O elogio fúnebre realçou Serafim Fernandes Lopes Morais, 30 anos, como um exemplo de auto-superação. Depois de ter, como muitos, uma juventude conturbada, foi-se corrigindo pouco a pouco, mudanças  visíveis desde a família ao mais alargado círculo social. Fez o ensino médio no Puniv do Lobito e frequentava o segundo ano do curso de economia na Universidade Lusíada. Era, à data da sua morte, funcionário de uma empresa bancária de referência na província do Huambo, depois de ter sido gerente da secção de frescos de um supermercado relevante no Lobito. Chegou do Huambo às 23 horas de sexta-feira (17/06) em visita familiar, tendo ocorrido o acidente horas depois nas imediações do bairro Damba-Maria, também conhecido como 27, quando regressavam de Benguela de motorizada. Deixa viúva concebida.

Bráulio, quadro de uma importante empresa do sector petrolífero, preparava-se para a cerimónia de outorga do diploma de licenciado em gestão de recursos humanos, pela Universidade Lusíada, aprazada para Outubro deste ano. Como atleta de hóquei em patins, passou pelos Clubes Casa do Pessoal do Porto do Lobito, União da Catumbela e Hóquei do Lobito, de que é co-fundador. Completaria 33 anos na próxima sexta-feira, 24 de Junho.

Gociante Patissa
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Nota: foi igualmente uma notícia chocante a da morte de Serafim Morais, o Sera, que foi meu colega no 2º e 3º anos do curso de ciências sociais no Puniv do Lobito. Ficam guardados os bons e maus momentos da nossa vivência estudantil. 

Gociante Patissa
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sábado, 18 de junho de 2011

Cidade do Lobito enlutada, faleceu Bráulio Teixeira

Filipe Bráulio Teixeira perdeu a vida na madrugada de hoje, 18/06/11, na sequência de um despiste de motorizada, quando regressava à casa no troço Benguela-Lobito. Vai a enterrar na próxima segunda-feira. Bráulio fazia-se acompanhar de um amigo, que igualmente faleceu. Filho do artista plástico Joaquim Pedro Teixeira "Tshombé", o também fundador da ONG ADAMA (Associação dos Defensores e Amigos do Ambiente), Bráulio dedicou parte da adolescência à prática do hoquei em patins no Clube Casa do Pessoal do Porto do Lobito. Serviu "Os Verdes", braço juvenil da ADAMA que congregava jovens voluntários para acções de educação e promoção ecológica. Fez o ensino médio no Puniv do Lobito e o ensino superior na Universidade Lusída do Lobito. Destaca na sua página do Facebook o amor à família, de que faz parte Katila Teixeira, irmã mais nova que foi recentemente Miss Benguela.

Que a sua alma descanse em paz.
Gociante Patissa
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Nota: Foi um choque a notícia, que me chegou via telefone pelo pai do falecido, o grande companheiro nas ONGs e no mundo da arte, "Tshombé". Para recordar os anos interessantes de caminhada conjunta, voltamos a publicar esta crónica, que ele teve a sorte de ler ainda em vida e sobre a qual tivemos um agradável bate-papo.

(Mexendo no arquivo) Crónica: "E lá conheci a capital (I)"

embarque estava marcado para as 7h00 da manhã no voo mono-motor da SAL (Sociedade de Aviação Ligeira). Já não recordo se o trio partira do Lobito em “caravana”, ou se o combinado foi apenas nos encontrarmos no aeroporto 17 de Setembro, na cidade de Benguela. O mês era Junho, em 2001. Cambele, Bráulio e eu estávamos, como tal, devidamente agasalhados.

Neste relato, Cambele, o kambuta do grupo, vem em primeiro lugar, não obstante o B, de Bráulio, vir antes na ordem alfabética. Ansiedade, entusiasmo e doses de traquinice recheavam a nossa bagagem. Aguardavam-nos 15 dias em Luanda para o workshop sobre Coligação e Advocacia em Direitos Humanos, dirigido por expert americano, iniciativa da World Learning, ONG americana com a canadiana Fern Teodoro à cabeça. Cambele ia pelo Projecto (hoje Associação) Omunga, apêndice da Okutiuka. Bráulio era da ADAMA (Associação dos Defensores e Amigos do Meio Ambiente), e eu da AJS, ainda em embrião.

Cambele, que já conhecia a capital, ficou líder do grupo e deu conta do recado! (Diz-se que os kambutas têm que passar em frente e falar alto, ou ficam esquecidos, né?!) Bráulio, amante de motos e atleta de patinagem com experiência e cicatrizes mil, tem familiares na Ilha. Eu conhecia Luanda, como bué de vocês, pelos livros e TV.

Com o avião já na placa, veio a notícia de não embarcarmos por causa da situação militar. Mas como assim, ó Cambele?! Vocês são de 78 e não têm adiamentos. Sim, mas a culpa não é nossa, é o Ministério da Defesa que não nos quer renovar os talões de recenseamento! Yá, o pessoal da DEFA não carimbou os vossos bilhetes. Mas a viagem é interna!!! Então só tu podes ir? A princípio sim, disse, constrangido. O chefe do grupo era apenas mais-velho de um ano. As horas começavam a acelerar o passo. O desespero ruía-nos o peito. O workshop iniciaria no dia seguinte, portanto qualquer substituição já vinha tarde. O único consolo era o sorriso de empatia do pessoal da Escala. Lá foi outra vez o Cambele abordar os “conterras” do Serviço de Migração, afiando os termos de aprendiz de activismo cívico e ex-seminarista, o que veio a resultar. Ai, que susto!

Num momento fecham a porta, ainda na província, e quando a abrem já é capital, nós no Bona! Dupla inauguração: é que, também, só conhecia o interior do avião pelos filmes. Mas não era tudo. Fomos acomodados, qual gente que presta, numa pensão, ao Mártires de Kifangondo. Até então, só doente dormia em outra cama, na sala do anexo de minha mãe. Tudo isso era pouco. Não é que arranjaram eclipse solar e tudo para as nossas boas-vindas...?! As ruas luandenses  eram inertes, o que apreciávamos do quintal do Instituto Nacional da Criança, ao bairro da Calemba. Um dia de se apagar do calendário laboral. Poucos se atreveram a sair de casa, de tanto mito que correu a respeito de eventuais prejuízos do eclipse solar à visão. Soubemos, nas conversas pelo telefone fixo, já que o móvel era um luxo adquirível ao preço aproximando os USD 500, que em Benguela fora também uma agitação. Quer dizer, agora nem já a lua pode beijar o sol à vontade?...

Quinzena memorável, pela socialização, às vezes importunada pela traquinice da nossa idade. Ainda bem que foi oportuno o puxão de orelhas (e a experiência de José Patrocínio, o líder da “Coligação Ensino Gratuito, Já!”, que projectávamos). E de vez em quando, para a minha alegria, revejo alguns colegas de lá que nos invadem as telas, pelo poder, Direitos Humanos, arte, ou oposição: Otília Noloty (administradora municipal da Chibia, na Huila), Helda (candidata à liderança do braço juvenil da Unita), Nany Pereira (Elinga Teatro), Fridolim Kamolakamwe (poeta e declamador showman), Walter Pinto Leite (Bloco Democrático, ex-FPD), Abelardo (série Papá Ngulu), Lúcia (AJPD), etc.

Os churrascos da Fanta bem que deram jeito a poupar o kumbú dos per diem, que não sobreviveria ao luxo dos restaurantes. Não deixou de ser inusitado ver o vibrar de viaturas na escura noite da ilha, mas não vou ser eu a dizer-vos o que montes de casais faziam xinguilados lá dentro em horário laboral da camisinha. 

Bom, e lá conheci a capital. Luanda, digo após idas e vindas, é melhor a olho nu. No papel ou TV é linda, bronzeada, acolhedora, musa, mas lhe falta cheiro, o cheiro da razão ou da vergonha.

Por: Gociante Patissa, Lobito, 2010
www.angodebates.blogspot.com, publicado no Boletim "A Voz do Olho" (de que é editor e co-fundador), edição de Setembro-Outubro de 2010, veículo informativo, educativo e cultural dos Amigos da AJS-Associação Juvenil para a Solidariedade, ONG angolana com sede no Lobito, província de Benguela
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sexta-feira, 17 de junho de 2011

segunda-feira, 13 de junho de 2011

OS NOMES EM UMBUNDU II, DO SITE HUAMBO DIGITAL

Fórum sobre Identidade Nacional, realizado no Huambo, aos 23/10/2003, fez a propósito dos nomes a seguinte conclusão-recomendação:

Seja constituído um Grupo Técnico de Trabalho formado por especialistas angolanos, representantes de várias comunidades sócio-culturais, que se debrucem sobre o estudo das formas de atribuição de nomes nessas mesmas comunidades, para que cada indivíduo veja no nome atribuído um factor ou aspecto da própria identidade. O resultado do estudo levar-se-ia à Assembleia Nacional para aprovação como lei. trazemos o estudo sobre alguns dos nomes das crianças que frequentam o Centro Educativo “A Semente do Futuro”. Achamos que é uma grande riqueza e sobretudo mostra que na cultura umbundu de Angola a legislação sobre os nomes e apelidos podia ser diferente por causa do seu significado cultural e simbólico.

A metodologia usada no trabalho é a seguinte: depois do nome, vem, entre chavetas, o provérbio em que se enquadra a explicação, e no fim a respectiva lição moral. Para alguns nomes vem apenas a explicação.

Nota: o Blog Angodebates tenta dar o seu contributo traduzindo ou completando o sentido, o qual aparece a azul.

1.    EYALA [eyala lyambata tchalwa] – A lixeira ‘recolhe’ e suporta tudo.
2.    HENDA [enda lakulu okakuka, enda l’omãla okateñgela – quem anda com adultos chega a velho, quem anda com crianças chega a coxo] - O segredo está em que o mais velho conhece o que mete medo – tchikola – e “não toca”. Quem tem medo obedece e não pratica o mal!
3.    KALEI – É o nome dado ao responsável das chaves na casa real.
4.    KALUNDUNGU [vokulula kwolondungu hamo kwatcho. Vilula, polê p’otchimanda vipwapo – o gosto do gindungo está no seu picar; é picante, mas devora-se a gamela] – A pessoa é boa para uns, para outros passa por má.
5.    KAMWENHO [ndilya k’omwenho kaindanda kumwe; kupañgela wavisya – gozar por excesso a vida tem pernas curtas, a gula leva a frustrações] – Coma parte da tua riqueza e guarde outra, porque não se sabe o dia de amanhã.
6.    KAPIÑGALA – [kapiñgala kalisiki la mwenlesubstituto é inferior ao dono] É o herdeiro de tudo o que é dos mais velhos, desde o feitiço até aos bens. Tal como o sobrinho, filho da irmã, é herdeiro de tudo o que é do tio, assim o filho.
7.    KASINDA – É o nome dado àquele nascido a seguir aos gémeos.
8.    KATCHISAPA [kakuli lu katyapulamo upindi – num ramo disperso, não há quem não tropece] – È um ramo ao longo do caminho que batendo a todos pode ser sinal de união.
9.    KATITO [Katito oko kove, tchinene tchamãle. ] – Fique sempre feliz com o que tens, antes que te chamem de invejoso.
10. KATULO [lyanga otulo, hukalyange ovisokasoka] – Durma antes e pense depois, porque, de contrário, o sono não vem.
11. KAVINyAMA [ovilongwa havyangeko kavinyama] – Não me acusem do que não fiz. Se estás sem culpa, tranquiliza-te;
12. KAYENGENGA [kayengenga walunga] – Sê flexível, porque o rijo acaba por partir.
13. LIKILIKI ou Lililili [likiliki wandele la põlo] – Toda a agitação é passageira.
14. LUKAMBA [lukamba l’ohele kakwete] – Não teme nada, pode ir procurar esposa mesmo fora da sua família. São coisas que na tradição africana não se fazem! Mas ele é o soldado do rei que procura e conserva os anseios do chefe, quer em tempo de guerra, quer em tempo de paz e não se importa em que condições forem.
15. MOMA [apa walila omoma hapoko yukumomela – não é no local em que se come a jibóia que as outras nos atacam] – O mal não vem todo no mesmo dia
16. NDANDULA [kwenda ombela owiñgi uvandjako; kwenda ondambi, umosi lika ovandjako. Ndandulako] – Para onde foi a chuva todos olham, para onde foi uma bela mulher só o marido acompanha.
17. NDJAMBA [yakutulika, eteke yukutulula, k’ilu kwalinga otchipãla– o elefante que te eleva um dia te traz abaixo, o céu fica longe] – Quando se tem alguém num lugar de chefia, está-se seguro, mas tudo pode acabar de repente! – 
18. NGEVE [ngeve yusi kwatala] – Quando o hipopótamo passa o dia estendido, está para morrer!
19. NHIMAWA [onyima yiwa kayimoli omõla – costas aconchegantes não conseguem ter bebés] – Quem quer não tem! Quem tem esbanja! Quem pode não faz;
20. SAFEKA - É nativo: nunca mudou.
21. SANDULA – Esbanjador. – “Pessela” – [wapessela kanonla – wanyelisa kasandiliya] – há perdas sem substituição!
22. SIMBU (=TCHOKOSIMBU) [tchosimbu, okwiya tchalinga tchokaliye] – Se alguém te deve, não te zangues com ele; quando vier pagar, ficará tudo novo.
23. SIMWILA [hukandjupe tchange, ñgasi (ale) likalyange–] – Uma viúva que cuida dos filhos sòzinha, não lhe peças mais emprestado (sobretudo sem lhe pagar).
24. SUKWAPANGA (=Suku AKWETCHE) [Suku akwetche, otcho ovimbanda vilipandeJá que Deus não te quer curar, então que se retire para os kimbandas mostrarem o seu melhor]. São nomes atribuídos a crianças nascidas de mães que perdem (muitos) filhos por doença. Como acontece na maioria de nomes “infelizes”, acredita-se que a morte nos retira pessoas queridas. Logo, se o nome revela certo desprezo, ela se desinteressa.
25. TCHAKUSOLA [tchakusola kwama k’omunga] – Mesmo que caiamos no goto, há que esperar pelo convite.
26. THIKOLA [tchikola hukatchikwate] – se é sagrado, não deves tocar.
27. TCHIKOMO [tchatchotcho tchika ukusumba!] – Admiração por medo ou insólito!
28. TCHILOMBO [p’otchilombo tch’olongende, kayolokele osalapo] – na casa de hóspedes, o lento é o último a sair.
29. TCHINOFILA [umba te watchilya] – A causa pela qual se morre tem de ser do nosso inteiro conhecimento e/ou pleno consentimento  a morte é vista como castigo por algum mal, ou seja, não te matará o que não comeste/estragaste.
30. TCHINONHALE [tchina onyanle katchukutundi; tchinosole katchukusole] – o que não gostamos persegue-nos, o que almejamos está sempre distante!
31. TCHIPUMA [tchipuma etemo tchiyunda, tchipopya omanu tchikeya] – O que se capina com a enxada torna a crescer; o que as pessoas dizem há-de acontecer!
32. TCHISINGI [tchisingi kakulihile omõla wombwale; omõla wa soma, osuke ale owasi, vosi valipundukamo] – O tronco (no caminho) não conhece pessoa boa e delicada; não conhece o filho do rei, rico ou pobre; todos tropeçam nele.
33. TCHITENDE [tchitende opanga etchi tchinvi ndañgo watanga omo watopa. Walunguka kapangi etchi tchivi] – Uma pessoa parva – minus habens – faz coisas descabidas, mesmo que tenha estudado; a pessoa dotada não faz coisas sem sentido.
34. TCHITULA – É alguém que nasceu numa aldeia nova.
35. TCHITUMBA [tchukwihã so la nhoho, wamale kakutchihã, hati okwete ale] – o que te dá o pai ou a mãe, pessoa alheia não te daria, diria que tens já o suficiente
36. TCHIVINDA [okutela utale l’uteke, volundila utale – quem martela metal à noite, será acusado do metal sumido] – Ao guarda se responsabiliza tudo o que falta.
37. TCHIYO [nda wamõla kahañgu, katchiyo hukawinesi; kahañgu nda kepo, katchiyo kove iya okupopela – quando achares uma panela em melhores condições, não jogues fora a frigideira de barro, salvar-te-á algum dia] – Mais vale ser fiel ao que já nos pertence, porque da novidade nos poderemos arrepender tarde demais.
38. VIHEMBA - È um nome dado a quem durante a gravidez e o parto provocou muitos problemas de saúde; foram precisos muitos medicamentos para a mãe ou mesmo o pai.
39. VISSOKA [ovisoka-soka vyovutima] – O coração pensa em tudo e às vezes sem razão!

Por André Lukamba, em colaboração com O mais velho MOISÉS MUNDA
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"Provérbios Angolanos na Literatura Oral", Texto de Luís Kandjimbo (*)

Um breve olhar sobre os provérbios angolanos,
a partir de recolhas efectuadas entre os séculos XIX e XX.


in Revista de Bordo AUSTRAL (TAAG - Linhas Aéreas de Angola), Nº 45, Jul/Ago/Set 2003.

Autorização para reprodução do texto concedida por AUSTRAL em 11 de Fevereiro de 2004.

  


A literatura angolana sob a forma escrita sedimenta-se apenas no século XIX. Porém, a criação verbal oral é bem mais antiga. Remonta aos primórdios da própria comunicação humana. Por isso, qualquer definição de literatura angolana hoje, não pode perder de vista aquele segmento a que se chama oratura ou literatura oral. Trata-se de um acervo de textos orais que podem, presentemente, ser conservador com recurso à escrita.

Conscientes do seu valor andavam alguns autores do séc. XIX. Não faz sentido ignorar tais aspectos, na medida em que eles traduzem muito mais do que isso. Revelam a coexistência de três tradições em que a literatura angolana se desenvolve. A mais antiga, a literatura oral ou oratura, é aquela que nos remete para os tempos imemoriais.

Quando, nos anos 60, o linguísta ugandês Pio Zirimu forjou o termo oratura, decorria nas universidades de Makerere no Uganda, Nairobi no Quénia e Das-es-Salaam na Tanzânia, um debate sobre a hegemonia das línguas europeias. Mais de quarenta anos passados, são muitos os defensores da ideia segundo a qual a oratura não é apenas uma vertente das literaturas modernas em África. Encerra em si as conotações de um sistema estético, um método e uma filosofia. (1)

Mas, se tivéssemos que acompanhar os debates que se desencadearam em Angola sobre o uso das línguas locais e das suas literaturas orais, iríamos encontrá-los nos jornais publicados em Luanda no século XIX. Tal era o vigor das reflexões que autores como Joaquim Dias Cordeiro da Matta e o suíço Héli Chatelain deixaram para a história valiosas recolhas.

No entanto, a atitude assumida por Cordeiro da Matta não pode ser comparada com a de Héli Chatelain, na medida em que, no plano do conhecimento, o primeiro desenvolve uma análise a partir de uma visão endógena. O segundo é movido por um interesse fundamentalmente etnográfico e exógeno, além de ter pretendido, segundo Geraldo Bessa Víctor, “pavonear-se com o primeiro lugar, na ordem cronológica, à frente de autores de florilégios de provérbios angolenses, prémio a que em verdade não tinha jus.” (2)

Em todos os trabalhos de pesquisa realizados sobre a literatura oral angolana nos séculos XIX e XX, os provérbios ocuparam sempre um lugar de destaque. Merecem referências as seguintes obras: Elementos Gramaticais da língua Nbundu (1864), de Saturnino de Sousa e Oliveira/Manuel Alves de Castro Francina; Kinbundu Grammar – Gramática Elementar do Kimbundu ou Língua de Angola (1888-1889), de Héli Chatelain; Philosophia Popular em Provérbios Angolenses, Jisabu, Jiheng’ele, Ifika ni Jinongonongo Josoneke mu Kimbundu ni Putu Kua mon’Angola (1891), de Cordeiro da Matta; A Collection of Umbundu Proverbs, Adages and Conundrums (1914), da West Central African Mission – A.B.C.F.M.; Missosso, volume I (1961), de Óscar Ribas; Selecção de Provérbios e Adivinhas em Umbundu (1964), do Padre José Francisco Valente; Sabedoria Cabinda – Símbolos e Provérbios (1968), do Padre Joaquim Martins; Filosofia Tradicional dos Cabindas (1969-1970), do Padre José Martins Vaz; Dizer Assim (versões em português de provérbios da língua Umbundu, 1986), de Costa Andrade; Ingana Ye Mvovo Mya Bakongo (provérbios e máximas dos Bakongo, 1998), de Miguel Barroso Kyala.

No contexto plurilinguístico angolano, o provérbio tem diferentes designações. Diz-se Olusapo na língua Umbundu; Omuhe ou Omuse em Niyaneka-humbi; Ingana em Kikongo; Jisabu em Kimbundu; Ikuma ou Cikuma em Cokwe. (3)

Dentro da classificação de textos literários orais, o provérbio representa o tipo de textos que, apesar da sua autonomia, pode no entanto entrar na construção de outros textos. Constituindo uma categoria de um conjunto que inclui ditados e máximas, caracteriza-se pela brevidade, associando-se-lhe uma estética da transmissão de pensamentos, crenças, ideias, valores e sentimentos. No que à sua estrutura diz respeito, o provérbio é um texto sintético e de uma grande densidade semântica.

Um provérbio carrega sempre dois sentidos – literal e conotativo – implicando um significado secundário. A passagem do primeiro ao significado secundário, cuja coerência é possível detectar em determinadas circunstâncias, constitui o núcleo da sua beleza, justificando por isso o esforço de interpretação que ele exige.

A estrutura dos provérbios normalmente é bipartida, apresentando premissas em dois membros ou orações da frase, numa configuração aparentemente silogística.

Além do sentido literal e do sentido conotativo, há que referir o tema, isto é, a lição a reter, a síntese subjacente ao significado das palavras e de que se parte para a extracção da ideia, do valor, do pensamento, enfim o ensinamento moral ou filosófico. Ao incidirmos sobre o tema, estamos a dar destaque à natureza pedagógica dos provérbios, porque deste modo a eles se recorre para exprimir algo que diga respeito aos diferentes aspectos da vida.

O jurista angolano Moisés Mbambi, enquanto falante da língua umbundu, seleccionou um conjunto de provérbios contendo princípios jurídicos fundamentais do direito, expondo a sua interpretação no contexto do pensamento jurídico de origem ocidental, mais especificamente dos diversos ramos de direito. (4)

Com o elenco que se segue, exemplifico o exercício de interpretação dos provérbios (5) veículados em Umbundu, uma das línguas Bantu faladas em Angola.

- Ekepa kalilinasi l’ositu, omunu kavokendi lomwenho (o osso não é deitado fora com a carne, a pessoa não é sepultada com vida).
    O osso está para a carne assim como a pessoa está para a vida. Este provérbio pode ser proferido quando se pretende ensinar ou elucidar alguém sobre a importância da relação existente entre a pessoa, as partes do seu corpo e a própria vida. A relação existencial que se observa nas duas orações do provérbio, permitem inferir a construção de uma metonímia, pois o valor da carne e da pessoa humana é aferido por uma das suas partes. É que não há carne sem osso, mas também não há vida humana sem pessoa.
- Ekova k’omanu, ochipa k’inhama (a pele humana caracteriza as pessoas, a pele dos animais tem um nome diferente).
    Não se deve confundir a pessoa com os animais. Apesar da pessoa e os animais possuírem pele, há na sua aparência uma diferença essencial e profunda. O que permite distingui-los. Por isso, tendo em atenção a dignidade humana, não se pode maltratar as pessoas como se fossem animais. Se quiser ser tratado como pessoa, deve cuidar mais da higiene, para não se assemelhar a um animal. A metonímia observa-se aqui igualmente. A aparente semelhança das partes não pode ser critério para avaliar o todo de duas realidades distintas.
- Ekova liyetimba, olondunge k’utima (a pele cobre o corpo humano, o juízo – ou a responsabilidade moral – cobre o coração humano).
    Do mesmo modo que o corpo revela o aspecto físico exterior, assim o grau de responsabilidade e integridade moral determinam o carácter da pessoa. O aspecto físico exterior não traduz o valor e responsabilidade morais de uma pessoa. Os homens não se medem pela estatura física. Antes pelo contrário, valem pela sua dimensão espiritual e interior.
- Onjimbo l’elungi, omunu l’onjo (o papa-formigas vive na cova, a pessoa habita uma casa).
    Um animal como o papa-formigas vive em qualquer cova que encontrar, já a pessoa tem sempre uma casa. Enquanto as covas abundam na selva, os homens constróem as casas de acordo com as suas necessidades. Os animais não transformam a natureza como os homens. A dignidade da pessoa não se confunde com o modo de vida dos animais.
- K’ono kwatota, omanu valuka (secou a nascente do rio, as pesoas mudam de lugar).
    Há uma relação de causa e efeito entre a existência de um rio e a constituição de aglomerados populacionais nas suas proximidades. A água é indispensável para a sedentarização dos homens e quando a fonte seca, parte-se à procura de outro lugar.
- Longa ochinhama, kukase omunu (alveja-se o animal, não se apedreja a pessoa).
    O animal pode ser alvo de caça, mas a vida humana é sagrada e deve merecer respeito. A pessoa nem sequer deve ser apedrejada.
- Omunu nda ñgo wafa kami ondalu, ava vasyala vayota (a pessoa que morre não extingue o fogo, os vivos continuam a servir-se dele – o fogo).

    Apesar da morte, que é uma contingência que afecta os homens, a vida prossegue com os vivos. A substituição e a sucessão são incontornáveis no mundo das relações sociais. A morte não põe termo à sobrevivência comunitária. Não há pessoas insubstituíveis.
(*) Ensaísta e crítico literário.

(1) Ver Ngugi wa Thiong'o, Penpoints, Gunpoints and Drums. Towards a critical theory of the arts and the state in Africa, Oxford, Claredon Press, 1998, pp. 103-128.
(2) Geraldo Bessa Víctor, Ensaio crítico sobre a primeira colecção de provérbios angolenses, Lisboa, 1975, p.23.
(3) Ver António Fonseca, Contribuição ao estudo da literatura oral Angolana, Luanda, INALD, 1996, p. 52.
(4) Moisés Mbambi, O Direito Proverbial entre os Ovimbundu, Comunicação apresentada ao Colóquio do FENACULT, 1989.
(5) Ver José Francisco Valente, Selecção de Provérbios e Adivinhas em Umbundu, Instituto de Investigação de Angola, 1964.



Disponível em http://www.angola-saiago.net/prov.html
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domingo, 12 de junho de 2011

"Fora dos números" - Crónica do Areal, por Salas Neto (in «Semanário Angolense», 11/07/2011)

O tractor. Pois, noutros países, sejam desen­volvidos ou emergen­tes, sei lá, é que des­tas coisas de bric’s não entendo grande coisa, pois, como dizia, noutros países, o tractor é visto essencialmente na lavoura dos campos agrícolas, mas cá, entre nós, este «meio rolante» de «ori­gem camponesa» tem outras ser­ventias mais urbanizadas, sendo visto pela cidade de Luanda a estilar no milionário negócio do lixo, todo ele versátil, que é uma sujeira daquelas, quer dizer, que faz, quando o «quintal» já está abarrotado. Tuco, tuco, tuco.

«E o que é que o coitado do tractor tem a ver com a conver­sa, ó Saleno?», perguntou o coi­so, intrigado, ao que o cidadão respondeu: «Porque ele fez parte da encenação».
«Quê encenação?», insistiu o homem, sem me deixar respirar, ao que, diante da teimosia dele, me senti responsavelmente obri­gado a contar a história toda.

É assim: no domingo, por vol­ta das 21 e tais, fui atropelado por um menino de motorizada, que me colheu na pacatez de um passeio na rua da minha mãe, a famosa rua «C-Seis», no não menos famoso Bairro Indígena.
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sexta-feira, 10 de junho de 2011

reflexões literárias: "António Pompílio – Fronteira: a passagem do limite", por Ricardo Riso, 08 de junho de 2011

Antonio Narciso pompilio da Silva é Jornalista e Designer Gráfico. Bacharel do curso de lingua e literatura Portuguesa pela Falculdade de Ciências e letras em Luanda (Blog do autor).
editora: União dos Escritores Angolanosano: 2008
estante: Poesia
peso: 110g

Leia agora contributo de Ricardo Riso

António Pompílio – Fronteira: a passagem do limite

Ricardo Riso, 08 de junho de 2011.

Os primeiros anos do século XXI apresentam-se como uma época de aparente letargia frente ao vitorioso modelo neoliberal que tenta de todas as formas mascarar as suas falhas gravíssimas, ora por meio da manipulação dos canais de informação, ora por ininterruptas propagandas de busca por bem-estar e sucesso a que todos (supostamente) têm direito, procurando encobrir a exclusão social imposta à maioria da população mundial. Com o descaminho da esquerda política e a dificuldade da sociedade em se organizar nos países regidos pelo capitalismo, a sensação de inércia se evidencia por não mais se questionar o jogo ao qual somos submetidos, por isso é pertinente as considerações do filósofo contemporâneo Tony Judt com o intuito de desestruturar a impotência reinante:
Há algo de profundamente errado na maneira como vivemos hoje. Ao longo de trinta anos a busca por bens materiais visando o interesse pessoal foi considerada uma virtude. (...) Sabemos o preço das coisas, mas não temos ideia de seu valor. Não fazemos mais perguntas sobre uma decisão judicial ou um ato legislativo: é bom? É justo? É adequado? É correto? Ajudará a melhorar o mundo ou a sociedade? Essas costumavam ser as questões políticas, mesmo que suas respostas não fossem fáceis. Devemos mais uma vez aprender a fazê-las. (JUDT, 2011, p. 15-16)

Diante do desarranjo de nosso tempo torna-se necessário reaprender a questionar, e a literatura está a nossa disposição para suprir os anseios e medos que nos afligem. Com sua vocação para ampliar o mundo de cada um de nós, a literatura se apresenta como o esteio para nos fazer crescer e aqui cabe recordar o amor à literatura assim descrito por Tzvetan Todorov:
Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver. (...) em lugar de excluir as experiências vividas, ela me faz descobrir mundos que se colocam em continuidade com essas experiências e me permite melhor compreendê-las. (...) Mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. (...) a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. (...) ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano. (TODOROV, 2010, p. 23-24)

Essa longa introdução aponta para algumas questões que nos parecem interessantes e pretendemos expor nosso entendimento acerca da obra poética “Fronteira: a passagem do limite” (Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2008), do angolano António Pompílio, nascido no Lobito, em 05/07/1964. O livro ainda tem interessante prefácio de Katia Rodrigues. O autor é designer gráfico e jornalista bacharel do curso de língua e literatura portuguesa na Faculdade de Letras e Ciências Sociais em Luanda. Publicou em poesia “O sal dos olhos do mar” (menção honrosa, Prêmio Sonangol de Literatura – 1994) e “Simetrias”, para além de títulos em prosa e para o público infantil.
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quarta-feira, 8 de junho de 2011

Oratura: Divagando pelo universo do cantar popular Umbundu


Diz o senso comum que cantar é, assim como chorar e rir, manifestação universal. Isola-se no entanto o «dançar», já que, apesar de inesgotável campo de estudos, quase sempre depende do estímulo da canção/música/ritmo, digo eu. Daí ter eleito apenas a canção pelo ângulo da sociocultura Ovimbundu.

Recorrerei a memórias de uma infância na comuna do Monte-Belo, município do Bocoio, que abandonei aos sete anos devido à guerra civil. Permitam-me vestir de aura positiva a máxima que diz que “se pode tirar a pessoa do mato, e não o mato da pessoa”, na medida em que o conceito “mato” representa, no falar das nossas gentes, o meio rural e toda a sua mística – não necessariamente a selvajaria.

No “mato” ou kimbo, cantava-se em vários contextos. No político, ecos de resistência pró governo (partido único) e exército contra o inimigo (guerrilha da Unita) e apoiantes internacionais; no social, destaco a pedra onde mulheres transformam milho em fuba, ajustando golpes com “upi” (piso) ao compasso de canções, quantas vezes a satirizar ou a condenar hábitos e acções (do indivíduo ao colectivo) com base no sistema de valores do meio; mas é na oralidade (batucadas, serão no ojango ou à volta da fogueira) que reside o motivo desta divagação (seria exercício inútil definir oralidade).

Os contos só podiam ser partilhados de noite, nunca à luz do dia. Cresceriam chifres na cabeça de quem desobedecesse o mito (seria para desencorajar a mangonha?). Alguns deles, hoje, eu os assemelharia a filmes de terror. Houve também românticos. Não raras vezes, pedíamos que nos repetissem essa ou aquela estória durante anos. Não vinham a seco, carregavam sempre uma canção ou mais que isso – já não sei se não era a canção que as carregava.

O verso não é preocupação. Alguns nomes da música transportaram para discos a tradição, quer no conteúdo, quer na forma. É certo que a linha é ténue entre intervenção e tradição oral não engajada. Está aqui em causa o estilo corrido de narrar. Falemos a seguir de quatro nomes do planalto central (Huambo e Bié).

Zé Katchiungo, que se notabilizou pela música de resistência na Jamba (bastião de Savimbi), é exímio contador de estórias e provérbios em músicas bem dançantes, como são exemplo  “ucinje uti wovava”, “ocikoko” e “osoma yoneñe”. Venâncio Viñi-Viñi (“Etc., Etc.,” em Umbundu) narra peripécias da sua vivência de contratado nas minas de ouro de Transvaal, à época colonial, bem como a humilhação que é a guerra: Trititi, não chores mais/ porque o papá/ não tem pão/ para te dar/ (…) hukalile vali, Ota, ndakava [não chores mais, querido, estou cansado], sendo que “Trititi” serve de nome de criança-personagem, onomatopeia do ritmo de balas. Bessa Teixeira é mais conhecido pela reedição de cantares populares do que por temas originais (leia origem do tema “Sulunla”). Justino Handanga é outra pedra-angular.

Em Benguela, emergiu o jovem Sukumunla, de uma geração posterior à de José Viola, César Cangue e Joaquim Viola, estes ligados à Rádio Nacional de Angola. “A monlange, kulilelile, nyoho walinga (…) omangu yovowotele, kakuli u katumãla ko” [meu filho, não chores, tua mãe tornou-se (…) cadeira de hotel, não há quem lá não sente”], (Cangue). “Ame ame Ciyunge/ vatucita kavali/ Ciyunge/ vatutuma olongombe/ ove ekumbi liainda”], (Joaquim Viola) - um lamento por exploração doméstica para pastar bois. Temos ainda Fedy, autor do sucesso “kalupeteka”.

Vozes femininas são esporádicas. Surgiu Mila Melo com rapsódia nos anos 90. Mais recentemente temos Bela Chicola e Pérola. Esta última deu nova e bela roupagem a "omboio" do cancioneiro Umbundu, tema antes reeditado pelo Duo Canhoto. Patrícia Faria recuperou “catarina”, do trecho “kakuelele ongongo kayilete” [quem não casou não sabe o que é sofrer].

Há entretanto uma canção que desafia o padrão, também absorvida em pequeno. Ela desperta curiosidade pela preocupação que parece ter havido na concepção quanto ao ritmo e métrica. Cantada é ainda melhor, mas fiquemos pelo texto apenas, o único meio possível aqui no Blog:

Ondumbu wéh [o leão]
Yalia, yalia yamanla [devorou, devorou tudo e todos]
Kulo kayipitinla [aqui porém não chega]
Ame wéh [eu]
Ndaimba odunge ocilavi [confio o material com que fiz o cerco]
Ondumbu yipita pi? [onde passará o leão?]

Termino, portanto, com duas perguntas de retórica: terá havido influência de algum “missionário” ocidental para a estética da rima? Quando surgiu a fábula desta canção atribuída à lebre?

Um abraço
Gociante Patissa, Aeroporto da Catumbela, 8 Junho 2011
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terça-feira, 7 de junho de 2011

(Arquivo) Fábulas da nossa terra: "O destino de Luavava, Kanende e Moma"

Um dos aspectos humilhantes da colonização reside na subjugação e desprezo, pelo sistema, de parte da cultura local. Angola vive ainda as confusões do aportuguesamento de nomes, muitas vezes diluindo o nexo proverbial africano. Londuimbali, por exemplo, provém de Olondui vi vali (dois riachos), Nharea é Enyaleha (estepe, prado), Bailundo é Mbalundo. Mas nem tudo foi infeliz, diga-se. Quando os tugas decidiram “forrar” com o nome Monte-Belo a terra que os donos chamam de "Utue Wombwa" (cabeça de cão), acertaram, já que há mais poesia em Monte-belo do que numa cabeça de cão.

Conhecida pela rica cultura de abacaxi, Monte-belo, a comuna que me viu nascer, destaca-se na preservação da tradição oral do povo circunscrito ao município do Bocoio. É portanto nos fecundos matagais do Monte-Belo que nasceu a fábula de hoje.

Num dos inspiradores voos de sua mãe, deu-se a fecundação de Kanende (uma espécie de passarinho). De seu pai nada se sabe, já que entre aves não há compromissos, basta o apetite e o acaso pro-criativo. De uma abençoada chuva rejuvenesceu a senhora Luavava (trepadeira), dando à luz a menina Luavava, que por fatalidade congénita não sai do chão – até surgir mão humana com uma estaca, o que raramente ocorre na mata. Moma (jibóia) nasceu provavelmente de um saudável coito, que me custa imaginar no preconceito que carrego. Não é fácil associar a imagem de um apaixonado coito à espécie feroz, como é o caso de répteis letais. É melhor ficar por aqui com essa intromissão na intimidade familiar dos outros, que até não fica bem, né?!

Luavava tem sangue verde (mesmo você, se fosse trepadeira, teria o mesmo que outros vegetais). Moma nunca esteve de pé em toda a sua vida, como também é natureza dos répteis. Kanende vive expondo as axilas, uma deselegância incorrigível das aves que vivem voando para se locomover. Cada espécie sabe escolher suas presas, fugir de seus carrascos. Tudo na boa. A mata é um verdadeiro laboratório de coabitação.

Certo dia, Moma bronzeava-se na preguiça digestiva. Ao seu lado estava uma bem nutrida Luavava, que casualmente se encontrava na posição vertical, encostada no que sobrou de uma árvore neutralizada pela época das queimadas. Kanende apreciava a paisagem, pendurada num dos galhos.

— LUAVAVA! — gritou, assustado, Moma. — Avisa Kanende para fugir, vem aí um caçador!!!

Luavava sorriu. «Que estúpido esse Moma!», pensou, «que tenho eu a ver com o caçador?».

— Anda, Luavava!!! Alerta Kanende para fugir, depressa, que o caçador se aproxima!!! «Ó Moma, a nós o caçador não assusta, não damos carne nem sangue. Isso é lá convosco», continuou, calada e cínica, Luavava. Kanende sempre no devaneio da alma, sentada no topo do tronco.

«Tuáh! Tuáh! Tuáh!», atirou certeiro o caçador. Kanende perdeu a vida sem tempo para um último assobio. Moribundo, foi cair sobre o corpo de Moma, que mal se conseguia mover. Como chegar perto da jibóia? E outra vez – «tuáh! tuáh! tuáh!» – metralhou. Morte da jibóia. Duas presas. Fartura. Mas como levar a carne para a casa? Foi então que o bicho-homem agarrou na Luavava, tanta quanto pôde, usando-a como corda. Com ela arrastou Kanende e Moma. Se o tempo voltasse, talvez Luavava ouvisse Moma, talvez Kanende escapasse…

Moral: «Caveta upindi, mbumbuangolo kacosile» (máxima Umbundu) = o que afecta a perna não poupa a rótula.

Adaptação da fábula contada pela mana Arminda Kanjala Gociante Patissa
D. Gociante Patissa, Benguela, 2 Maio 2010
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A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

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