terça-feira, 21 de setembro de 2010

Crónica: “Um dia para esquecer, ou para lembrar?”


Os reactores do Boeing-737 roncavam o início da sua última meia hora de permanência na placa do Aeroporto da Catumbela, para o devido regresso ao ponto de origem, Luanda. Desembarcados os passageiros, a preocupação imediata era saber, do colega que fazia as folhas de carga e centragem, se Luanda se lembrou de enviar a edição do dia do Jornal de Angola.

Na secção de cultura, pág. 37, confirmo a notícia que esperava, sobre o lançamento do meu livro de contos, A Última Ouvinte, que teve lugar em Benguela no dia 17 de Setembro. Só não foi maior a satisfação por lhe faltar o «efeito surpresa». O jornal de Angola, não obstante ter estado no acto o seu repórter, cuidou apenas de retomar na íntegra o texto da Angop (da pena de Honório), cuja versão digital foi publicada anteontem na página daquela agência estatal de notícias. Pessoalmente, gostaria de reunir em jeito de reacções (e crítica) diferentes ecos sobre o assunto.

Tomado ainda pela emoção de ver referência positiva do meu trabalho em papel (seria o efeito Guttenberg?), sou alertado de um problema iminente. Falava-se de 17 passageiros na classe executiva, quando a limitação é de 16. Fosse qual fosse a causa do erro, estávamos rendidos à lógica matemática. 16 menos um, tudo bem; mais um é que não dava. De repente, o jornal em minhas mãos despia-se de toda a emoção, convertendo-se apenas em mais um inerte papel. Esteve sob minha responsabilidade o check-in da classe C, pelo que, se havia um culpado, tinha que ser eu. Na verdade, nesse emaranhado de emoções que implica a véspera e a ressaca do lançamento de livro, qualquer distracção é provável.

Já lá dentro estavam catorze. Custava-me enfrentar a realidade que me traria o último autocarro. As hospedeiras pressionavam já para o fim do embarque, acelerando mais ainda os ânimos e aquele “lavar as mãos diante do problema anunciado”, enquanto este caminhava para o seu pico. Erro humano (no caso, do oficial de tráfego), que significava USD 50 de diferença entre a classe Y (económica) e a C (executiva), mais os transtornos de quem vê as mordomias desta última a se esvaírem à última hora. Para alguns passageiros, o receio de não viajar na executiva é quase paranóico.

«Minha senhora, peço a sua compreensão. Cometi o erro de pôr um passageiro a mais na executiva, dos tais erros humanos e involuntários. Posso até tirar do meu bolso o valor para compensar a diferença. A senhora tem toda a razão, errei eu, mas foi involuntário», penitenciei-me, com semblante de derrotado. A senhora visada, cuja razão não debato, estava  irredutível. «Porquê eu?! O senhor sobe, vai lá falar com outros passageiros a ver se encontra um voluntário, eu é que não»! Lá no fundo, eu compreendia a reacção dela, cujo pescoço estava suspenso em apoio medicinal.

Restava-me abordar os dois últimos passageiros, um dos quais um deputado à Assembleia Nacional. Retomei o meu discurso de penitência, sendo que o companheiro do deputado disse «isso acontece», e foi para a classe económica. Levei a mão ao bolso para a prometida devolução da diferença monetária, o que o passageiro simpaticamente não aceitou. «Também sou escritor, e quando regressar de Luanda, por favor localize-me, gostava de lhe oferecer um livro meu», acrescentei num misto de culpa e alívio.

Mas foi inevitável o atraso no embarque, desta vez porque as autoridades colocaram entraves à entrada de ambulância com doente, uma medida sem critérios que chateou o colega chefe interino. Foi ele quem disse que hoje foi “um dia para esquecer… (ou para lembrar?) para não repetir”.

Gociante Patissa, Benguela 21 Setembro 2010
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