quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Crónica: “Quando a pedra afinal é parte de nós”


Está difícil. Sei que lá vai um bom tempo que da minha lavra não sai uma crónica, daquelas que algumas pessoas sentem falta (sendo eu uma delas, claro). E não julgue que é por falta de vontade. Tenho até tentado capturar os múltiplos vultos de ideias que passam pela ponta do meu nariz, mas, quando chegam na cauda do funil, atolam-se (permitam-me brasileirismo).

Sou, antes de escritor, um sentidor. Daí referir que as ideias passam pela ponta do nariz. O facto de nascer num berço camponês permite-me desde cedo sentir os mundos, do abstracto ao concreto. E não foram poucas as vezes que se confundiram um com o outro, digo, chegando mesmo o abstracto a ser rijo como uma pedra.

Ultimamente não são só as ideias que se atolam no cu do funil, mas também as emoções, umas destacando-se por não serem usuais. Talvez tenha empurrado a pedra a vida inteira para caminhar. A pedra sempre lá, antecipando-se a cada alcance. Agora, mais emoções agradáveis que o oposto, é verdade; mas, para um sentidor, não é determinante. É, às vezes, preferível que as emoções tenham um só sentido a terem que se misturar de forma intensa e ao mesmo tempo.

Sim, faz-me bem que em algum lado me valorizem em função do potencial interior – não vou fingir o contrário, é inútil! Fase difícil da vida. Deu-se início, em 2003, o cultivo com vista ao escoamento do excedente dos sonhos. E, sinceramente, com mais de uma coisa agora a exibir frutos quase maduros… talvez eu não esteja preparado. É como se a pedra já não estivesse no local, esperando ser empurrada antes de cada alcance.

«Mas é como se tivesses receio, parece um processo emocional violento», diz a amiga de Sines com quem tomo café no messenger, «porque as coisas que estão acontecendo são positivas». E ela segue digitando, eu de olhos exageradamente abertos sigo o raciocínio, rezando só para a ligação da Internet não falhar. «Serão várias pedras, e vais removendo algumas, mas elas estiveram lá tanto tempo, que quando não as vês nem sabes bem o que sentir».

Preciso, acho que sim, de expert em gestão de emoções. A solidão à porta fechada já deu o que tinha a dar neste papel. Mas que entenderão de gravidez espiritual da criação os que me rodeiam? Conseguiriam vislumbrar a dimensão da pedra, esta, que, até sabe mover-se à vontade para qualquer direcção? Sentiriam a ansiedade de uma viagem saída da lotaria para ver outro continente, dezasseis anos depois de se apaixonar pelo Inglês?

No outro dia, falei com uma pessoa que presta, pedindo ajuda para empurrar a pedra que me mantém, qual prostituta de subsistência, preso ao estômago. A acontecer, "posso morrer, já vi Angola [do meu ego] independente". Nesse dia, juro, parecia não existir a pedra, diria mesmo que não a tive de empurrar, para chegar à pessoa.

«Serão várias pedras, e vais removendo algumas, mas elas estiveram lá tanto tempo, que quando não as vês nem sabes bem o que sentir». Ora, se a minha amiga de Sines tiver razão, então o meu será daqueles casos de se dizer que a pedra afinal é parte de nós.

Gociante Patissa, 14 Outubro 2009
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3 Deixe o seu comentário:

kanuthya disse...

Essa tua amiga tem uma certa pinta de filósofa de taberna. Há que ter um certo cuidado com gente dessa, que diz disparate ainda antes de tomar os primeiros kaporrotos, que dirá depois.
Kandandu grande

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Oi, Kanuthya, gosto dessa amiga pela capacidade que tem de pensar e digitar rápido. Acho engraçada a sensação de estar tão próximo de alguem que em parte não se conhece. Quê isso de pensar qque embriaguês é negativa??? "Oholua kayukutuki, oco yakulalela" (Umbundu) = O bêbado não te insulta por mero acaso, é porque amadureceu a ideia antes.
Abraços!

kanuthya disse...

Adorei esse provérbio!

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