sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Conto em construção: "Um turista, uma cidade, uma lua que anda"



Depois de muito, mas muito tempo com os olhos parcialmente vendados por uma lei da força chamada colonização, os habitantes de certa localidade viriam agitar as águas. Entre outras coisas, que só os olhos libertos podem alcançar, notaram que havia algo mais belo que espreitar o sol às escondidas, era ver a lua, a elegância de uma lua que anda. E baptizaram a sua cidade de Luanda.

Os que odeiam Luanda como cidade são muitos, e estão certos. As pessoas que a amam não são poucas, e estão igualmente certas. Aqueles a quem Luanda não aquece nem arrefece são vários e têm razão. É que Luanda é um acabado exemplo de contraste, assim entende Man’Toy, um cidadão nosso que se vê obrigado a viver uns dias longe do sul. Enquanto reflecte, vê passar um Jeep X-5 atrás de um Starlet Bebucho, sendo evidente no rosto de cada condutor elevada auto-estima.

Era domingo. Man’Toy desembarcava do autocarro à noitinha, e nada indicava que o frenesim no parque fosse terminar, como seria normal após a hora do jantar. De facto, Luanda não dorme.


A cidade é vasta e com muitas ruas parecidas, o que a torna difícil de dominar. Man’Toy porém conhece um segredo, que não se estuda nem se encontra em folhetos turísticos. Conhecer Luanda passa por dominar as rotas dos táxis (candongueiros). O compatriota enfia-se no candongueiro certo e hospeda-se numa Pensão, ao bairro do Mártires de Kifangondo. O local já teve preço bem mais acessível, mas não resistiu à moda da especulação. Mas que remédio…  


Meia-noite no relógio e Man’Toy não conseguia pregar o olho, tal era o som ensurdecedor da casa ao lado! Alta farra para comemorar aniversário de bebé. Aliás, já foi dito, Luanda não dorme, pena é que nem sempre o motivo seja trabalho. Há quem leve a vida apenas a cantar, a dançar, e beber… Óbitos e aniversários não faltam, aliás, enquanto o fim-de-semana não chega para se “cair na noite”, de si já quase uma “religião”. Do outro lado da rua, guardas fazendo finca-pé ao sono, porque há quem também não dorme, na ânsia de uma oportunidade para roubar. Man’Toy sai para ver a beleza da lua que anda. Na portaria, depara-se com quatro mulheres de maquilhagem exagerada. E o guarda dissipa as dúvidas: “Chefe, vai uma fruta?” Para as prostitutas, era uma noite normal de serviço, já para Man’Toy um choque. “Fruta, não”, disse, e voltou ao quarto. 

Que fazia então Man’Toy em Luanda? Ele considera-se um conservador moderado. Vive argumentado que conservador moderado é aquele que, não concordando com certas mudanças, usa o poder da máquina fotográfica para guardar memórias. Umas vezes fotografa por prazer, mas geralmente é por protesto. Assim é que tomou a iniciativa de ir aos Estados Unidos para fotografar Barack Obama na Casa Branca, antes que uma mudança repentina altere a ordem das coisas. Dois anos de salário acumulado cobrem a passagem. A questão era apenas a obtenção do visto.

Lá chega à Embaixada 20 minutos antes das 8h. Alguns segundos são suficientes para apreciar a baía a partir do Miramar, a baixa, o Porto e o edifício do Banco Nacional. E apresenta-se para os respectivos procedimentos de segurança, radiografia e quê e tal… Dirige-se a outra sala, onde os guardas verificam a papelada e colam a foto 5x5cm no sítio próprio. O passo a seguir é num guichet, onde se podia ler "na falta de algum dado, não recebemos”, ou qualquer coisa assim.

E são tantas as perguntas no formulário (umas quase idiotas), que sempre fica algo por responder. A senhora que ia em frente, por exemplo, que é divorciada, esqueceu-se indicar o nome do ex-marido e a data de nascimento. “Ainda bem que nunca me casei”, conclui Man’Toy, “era só o que me faltava, ter agora que decorar a data de nascimento da ex… ora essa, pedir isso é que não!!!!

Um folheto recebido à entrada dizia que deveria pagar 10 USD, pelo que Man’Toy adianta já à funcionária que só tinha mil kwanzas. Mas é-lhe recordado que em território americano o dinheiro é dólar. Neste momento percebe que, afinal, o poder do nosso dinheiro, que até tem caras dos presidentes, Neto e Zé Eduardo, não é perfurante em certas paredes.

Sensibilizada pelo insólito motivo da ida de Man’Toy aos EUA, a funcionária, que não tirava os olhos do cabelo despenteado do homem, disse que o valor (atenção, 131 USD e não mil kwanzas) ficava por conta do povo americano. O passo a seguir era o tão esperado momento da entrevista. Ele imaginava-se já numa sala cheia de "brancos, muito brancos" de gravata e tal... pelo contrário, foi abordado por uma moça profissional que o fez sentir como se já a conhecesse. A terminar ela recomenda-o a voltar ao guichet inicial para fazer o pagamento final de 10 USD, ficando o passaporte por levantar às 10h do dia seguinte.

Nisto começava o desespero de Man’Toy, rogando aos presentes que alguém lhe vendesse 10 USD. Mas ninguém acolhia o SOS. Havia inclusive um compatriota com farda da empresa de Man’Toy, a quem abordou e esclareceu que eram "sugados pelo mesmo piolho". Simplesmente, nada!

Os guardas aconselham-no a sair para localizar kínguilas (câmbio de moeda na rua). “Mas onde encontrar os kínguilas, eu que mal conheço as entranhas de Luanda?”, refilava, calado, o homem. “Aqui mesmo perto, no Gangula”, é só curvar ao lado do Cemitério do Alto das Cruzes, insistiam.

Lá ele saia atrás dos malditos 10 USD com auscultadores ao ouvido, fingindo sentir-se à vontade na rua, seus medos no entanto activos. É que seu telefone era rádio e music player, portanto interessaria a ladrões. Naquele momento, uma rádio destacava a notícia do guarda dos correios que foi morto e amarrado no interior da instituição.

Passava pelo famoso hospital Ngangula e nenhum sinal de kínguilas. Na sua província, os kínguilas ficam com o kumbu à mostra na mão, como um abano, o que facilita a localização. Mas em Luanda, não. Finalmente encontra um velho, a quem tenta enganar disfarçando a fala: “Paizin-ho, aqui tinha mbora kínguilas, já num'stão?”, ao que o velho responde: “Você lhes deixou atrás na árvore”. Agradece, dá meia-volta e localiza a kínguila: “maezin-ha, então tão mbora a si escondé?”, e a resposta é directa: “Pensamos que o filho é mbora fiscali”.

Compra então duas notas de 10 USD (não fossem os malditos faltar outra vez!) e volta ao guichet. Lá posto, a senhora emite o recibo e diz o que disse antes, “O senhor não paga, os emolumentos ficam por conta do povo americano”!

Gociante Patissa, Luanda, 23 Outubro 09
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